sexta-feira, 23 de setembro de 2011

ARGENTINA - A ditadura tambem estava por ali


            A ficha caiu na cabeça de Bino e ele se deu contas de sua mancada. A reclamação foi o seu segundo erro naquele ônibus. Reportando o furto do dinheiro, e o confronto com os federales era extremamente perigoso, pois os milicos argentinos andavam de braços dados com os brasileiros.
            Bino, tentado retificar o erro disse ao motorista:
            – Vamos ser justos. Eu disse isto porque penso que a minha mochila foi aberta e não encontrei o dinheiro onde eu pensava o ter guardado. Deixe-me verificar tudo e lhe direi se de fato sumiu ou não o dinheiro - e se sumiu quanto foi exatamente o furto.
            Entonces que vayas ligero, por que os federales estão bem perto.
            –Volto num minuto. Volto antes de San Tomas.
            Apurate, San Tomas esta aí adiante.
            Bino voltou ao seu assento, colocou o dinheiro da carteira dentro do passaporte, esperou um minuto e voltou rápido ao motorista ficando de pé do seu lado:
            Señor yo estaba cometendo una injusticia. E abrindo a passaporte disse:        
            –Todo o dinheiro estava aqui dentro e eu na pressa não tinha visto, mentiu ele mostrando o dinheiro.
            Tu estas seguro que toda la plata está aí? Disse o motorista, com o rosto sombrio.
            Si señor, con toda la seguridad. Parece que ele só andou revirando as minhas coisas, mas não pegou nada, floreou a mentira Bino.
            Deve ser un Boton hijo de puta, aludiu o motorista ao Ratão como “botão”.
            – Que disse?
            – Boton, Botones, Taqueria, tudo é nome de milico por aqui, explicou o motorista com um sorriso, e continuou:
            – Andam batendo nas calçadas com seus tacos, seus saltos e vestindo fardas cheias de botões! E continuou:
            – Aqui na Argentina estão nos vigiando até no banheiro. A cara deste tipo ratero não me é estranha.
            Deve ser um hijo de puta informante dos botones, seguramente. Estes vadios não têm o que fazer e agora até turistas eles incomodam. Por isto que o nosso país está em la mierda e o turismo a la puta madre que lo pario.
            Bino o ouviu calado. Ele também estava revoltado, mas não queria falar nada no ônibus onde até as pessoas sentadas nos bancos da frente podiam ouvir o que o motorista abertamente dizia.
            – Mire Muchacho. Até adiante de nós, disse ele apontando para a estrada que estava com o asfalto todo remendado. – Eles deviam estar reparando estradas com o nosso dinheiro de impostos. Não fazem nada. Não fazem estradas, não abrem escolas, hospitais, não fazem nada. Só farda, carros de assalto e pagando a rateros para ficar fuçando bolsa de turistas.

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O sorriso amarelo do motorista aos Federales de nada adiantou: Pararam o ônibus do Expresso San Luis na vila de San Tomas e Bino pressentindo alguma coisa foi para o banheiro do ônibus, vestido sentou-se no vaso, esperando o fim de sua jornada num inglório cubículo fedido a poucos quilômetros do seu portão de escape. 
            Seu corpo ficou retesado ficando esperando o momento fatídico das batidas na porta.
            O policial e entrou no ônibus que estava em silêncio. Bino colocou o ouvido na porta e ouviu parte da conversa.
            Procuravam por um fugitivo do Brasil que tinha um passaporte com o nome de Bino Tedesco e outras documentações com o nome de Antônio Fidelis que possivelmente ia para Buenos Aires.
            – O motorista disse não ter nenhum passageiro com este nome, mas mesmo assim o Policial pediu o manifesto dos passageiros, e de fato não havia nenhum Tedesco ou Fidelis.
            – E um tipo alto, olhos esverdeados e atléticos, disse o guarda. Parece que ele carrega uma mochila azul.
            – Si ahora yo me acuerdo: Eu me lembro. Este cara saiu do ônibus em Zarate e não voltou. Esperei até um pouco por ele, mas não voltava para o ônibus. Aí ele correu para o ônibus, pegou uma mochila e desceu me falando em Português que ia ficar ali. Um cara barbudo e de óculos escuros, o esperava num Peugeot azul claro e saiu quente em direção a Buenos Aires.
            – Un Peugeot azul claro?
            – Si. Era un coche bien nuevo.
            Vos vistes la licencia?
            Non, pero era licencia de Buenos Aires. Y nel volante iba uma muchara rubia, de unos vinte y seis años, fumava y usaba anteojos escuros.
            – Carlos, vos te acordas de uma Peugeot Azul Claro que passo com una rubia guapa a um rato atrás?  – Gritou o policial para fora do ônibus.
            Yo creo que era um verde claro, disse o outro policial.
            Mierda! Verde o azul claro?
            Se la yo! Estava mirando la rubia, hombre, disse o Carlos, completamente justificado pelo machismo.
            – Vos vistes dos tipos nel coche?
            – No estoy cierto, La rubia parecia sola.
            – Mierda inspecionaste el coche? El maletero?
            No carajo! No habia motivo de parar a nadie, era solo uma piba! Se la deje passar, por supuesto.      
            Carlos vos sois un idiota.  La vaga tenia dos subversivos nel maletero!
            E nervoso, o Federal começou a berrar ordens: Chame o posto Norte da Capital e digam para segurar todos os Peugeots: verdes ou azul claros, Todos. Passe um telex para a central de Buenos Aires e passe as informações do carro: Peugeot nova, dois caras e a loura, diga que tem placas da Capital.
            A voz agora era bem alta e para dentro do ônibus: – A Peugeot tinha duas ou quatro portas?
            – Quatro portas, disse o motorista.
            – Azul claro mesmo?
            – Bem estou de óculos escuros e o carro estava na sombra. Poderia ser um verde claro, quanto a isto não estou seguro.
            – Carlos adicione ao Telex que o carro é de quatro portas e é quase novo. Não mude a descrição da cor.
            E a voz autoritária berrou para dentro do ônibus: – Y ahora, andate vos que era um duro “Pode se arrancar agora”.
            Pela fresta de ventilação junto ao vidro fosco do banheiro, Bino viu um cara alto, de costeletas, óculos Ray Ban espelhado e de quepe e casaco de couro negro entrando num Ford Falcon da Policia Federal com outro policial já no assento. Em seguida, as luzes vermelhas da viatura começaram a piscar, ouviu-se o gemer da sirene e o Falcon de motor especial, saiu rasgando o acostamento e queimando pneus, deixando para trás só uma nuvem cinza de pó de pedra e cascalhos, alguns dos quais picotaram o ônibus.
            Com seus olhos grudados nas frestas da ventilação Bino viu o posto da policia federal ir passando e depois o ônibus pegou a estrada e ganhou velocidade, mas Bino ainda continuou, no banheiro e tremia de medo e agradecia a Deus por aquela gente humilde do ônibus que sabia que ele estava lá, mas nenhum deles o entregou.
            Se recompondo, Bino lavou o rosto, se enxugou e saiu do banheiro para a sua poltrona, e subitamente se espantou quando aquela gente o aplaudiu.
           
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O Sr. Martinez escorregou um pouco o vidro da janela e o sob o zumbido da turbulência do ar perguntou: – Como es tu nombre?
            Bino, Bino Tedesco.
            Yo pensava que tu nombre era Arturo.
            – Não Arthur é o nome falso em minha identidade estudantil.
          Novamente, por trás do bigode de guidão de motocicleta, Sr. Martinez esboçou um sorriso e dando novamente uma tampinha na perna de Bino lhe disse:
            – Bino, tudo vai sair bem.
            – Espero em Deus, disse Bino, e perguntou:
            – Sr, Martinez, a quantos quilômetros estamos de Munro?
            – Estamos indo em direção oposta. Munro está do outro lado; estamos indo para a Capital da Província de Buenos Aires, que é La Plata. E lá que eu vivo.
            – La Plata?
            – Sim. Nunca digo a ninguém onde realmente vivo. Eu tenho um ranchito em La Plata.
            – Mas o senhor não confiou nos passageiros do ônibus? Se fossem gente má eles nos denunciariam aos Federales.
            – Sim, eles não eram maus. Mas se tivesse um informante entre eles? E num sussurro disse: Bino, nunca fale muito em tempos difíceis como estes. Sob tortura todos falam; todos! Se alguém apertar qualquer um passageiro a resposta será verdadeira: Munro.
            – Mas o nome do senhor é Martinez; não é mesmo?
            – Que diferença faz disse o velho rindo? Mas o meu nome é mesmo Martinez. Juan Martinez. Quando o tema é meu nome, ai eu não sei mentir direito.
            – E nem eu, riu o Bino, e ambos riram.
            E o Sr. Martinez fechou o vidro de sua janela e dormiu.

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            La Plata definitivamente era bem menor do que Buenos Aires, mas mesmo assim era uma cidade bonita, bem iluminada, de ruas amplas, vários edifícios governamentais imponentes no estilo neoclássico.
            Uma cidade onde já a primeira vista se sentia a sobriedade e a aura cerimonial da capital da Província; Bino notou vários prédios imponentes de universidades e ele deduziu que lá seria também um centro intelectual argentino.
            O ônibus parou numa rodoviária simples, limpa, ampla e bem iluminada.
            Sr. Martinez fez sinal para Bino o acompanhar até uma cabine telefônica. Ele falou rápido com alguém e agora usava o seu castelhano interiorano, com uma cantadinha que Bino já tinha ouvido no norte da Argentina. Depois da chamada, ambos sentaram num banco de madeira, na extremidade da rodoviária, Bino pôs a mochila no chão e bocejou.

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Em quinze minutos Pablo já estava numa estrada rural de pó de pedra e pedregulhos indo em direção norte.
            A noite era iluminada, a lua dava uma nuance prateada na estrada e aos robles a beira da estrada, que pareciam cansados com seus ramos espreguiçados  e chorosos, o rádio tinha música campesina, com uma guitarra triste e Bino mal se mantinha acordado.
            Tudo era plano, os pampas pareciam uma lona prateada estendida com algumas casinhas e umas tantas araucárias, pinheiros e árvores sobre ela, e finalmente entraram em uma estradinha de barro que ia em direção ao ranchinho iluminado dos Martinezes que era praticamente cercado de muitas árvores, mas a noite Bino só identificou os plátanos e sauces chorões que protegiam o rancho do vento frio dos pampas, que eles chamavam de Minuano.

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Bino ficou duas semanas em Buenos Aires. 
            Carlos tentou arranjar documentação para Bino sair da Argentina por avião, mas devido a uma tentativa de bomba no aeroporto de Ezeiza, e a grande dificuldade de se obter o visto americano em Buenos Aires, a saída da Argentina por avião se tornou arriscada e imprudente. Houve grandes momentos de espera e até de frustração, mas Bino teve bastante tempo para conhecer a sua família mais a fundo, aprendeu muitos fatos curiosos sobre os Tedescos na Itália e até começou a sua árvore genealógica, indo completa três gerações ao passado.
            Bino sabendo que as tias estavam idosas passou com elas muitos dias adquirindo inúmeras informações sobre os seus antepassados, e anotando-as copiosamente em seu caderno e as tias estavam felizes de ter um sobrinho tão aplicado na genealogia familiar.
            Com Carlos e Alicia e, algumas vezes, com os Martinezes Bino conheceu vários locais turísticos de Buenos Aires e adjacências, Gostou dos bifes de quase um quilo e das famosas “papas fritas” do restaurante Los Anos Locos; visitou o Obelisco e lá tirou muitas fotos; subiram numa tarde o La Plata de barco-restaurante e Bino ficou espantado com a largura do rio e suas plácidas águas prateadas e com nuances douradas do pôr de sol. Também visitou a linda Catedral de Lujan, passeou e com Carlos e Pablo foram comer as famosas Empanadas Portenas na Recoleta e depois foram ver o super clássico do futebol Argentino, entre o River Plate e Boca Junior no estádio Vespúcio Liberti.  Neste dia o River perdeu em sua casa de um a zero e teve um quebra-quebra generalizado que muito assustou Bino.

http://blogs.estadao.com.br/ariel-palacios/ditadura-argentina-a-mais-sanguinaria-da/

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O PREFÁCIO QUE FOI CORTADO NA EDIÇÃO

O chegar a pagina 428 do livro meu ultimo livro, O PAPA BESOUROS (Redes Editora, Porto Alegre) a Salete Mores (minha editora) começou o corta-corta editorial, para que o livro não se enquadrasse no "genre" de "epistola", e como resultado, cortamos, entre outras coisas, o seu longo PREFACIO. Bem, gostava tanto dele que aqui, com saudosismo, o publico: SdM

PREFÁCIO

A viagem relatada neste livro é complicada e bem mais longa do que a antecipada. Teve os seus ziguezagues, me levou a locais imprevistos e teve o seu começo em Vitória (ES), onde nasci, que para mim já foi uma ilha coberta de sol, sonhos e poesia. De certo modo, esta jornada também começou em João Neiva, uma vila não muito longe da capital onde passei inúmeras férias de verão no casarão da velha Maria Elizabeth, a minha avó alemã, com as tias Damaris e Clélia, o saudoso e proverbial tio Corintho, os primos Adilson e Arilton, a prima Eugenia Maria e uma mão cheia de bons amigos.
Lá havia cachorros, pássaros, papagaios - quase uma cena de Gabriel Garcia Marques - num chalé de alegria, com um pomar de sonhos e em frente da casa, rolando lerdo, preguiçoso um riozinho todo cheio de curvas e voltas, onde aprendi a nadar.
No pomar havia muitas frutas. Meu finado avô Silvino não acreditava em semente de fruta que não fosse plantada. Havia mangueiras de muitos tipos, jaqueiras, caramboleiras, parreiras, coqueiros, goiabeiras, pinhais, bananeiras de todos os tipos e frutas raras no Sudeste - como serigüela, cajá-manga, cajueiros e até um gigante jenipapeiro.
Durante um hiato de inocência, a linda ignorância infantil me fez pensar que tudo aquilo seria eterno e que João Neiva de fato era um paraíso.
Também havia sempre na casa um constante aroma de café e bolinhos de chuva, vozes familiares, trinar de pássaros e latir de cães, cheiro doce de pomar, do verde, de pedaços da floresta atlântica, um pot-pourri de inocência, descobrimento, vitalidade e alegria que pensei ser aquele tempo eterno.
Ainda hoje, embaçadas pelo filtro do julgamento adulto, remanescem em mim deste tempo um aroma verde de infância, de simplicidade e imagens passadas que rolam em minhas memórias como águas de um regato prístino de sonhos inocentes, rolando entre samambaias, bambuzais, árvores frondosas, murmurando entre troncos caídos, orquídeas e cogumelos, gentilmente fluindo por lisas pedras, com suas águas rolando mansas, cobrindo miríades de seixos em seu leito que brilham tênues sem ferir meus olhos envelhecidos. Foi deveras um tempo bom que tento manter vivo no menino que ha em mim,
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Educação sempre foi de grande prioridade em minha família.  Fui a terceira geração da minha família que estudou no Colégio Americano de Vitória;  e. nesta escola, eu contava os dias para chegar as férias, para embarcar no trem da Vitória-Minas e voltar à vila, ao chalé-sonho, que ainda sempre busco, talvez até mesmerizado em conseqüência de genes atávicos de imigrante que me impelem em diáspora contínua em busca do campo, da terra em busca de raízes. 
Bem, mais ou menos coberto o período de infância, estipularei a quota zero desta jornada como Ouro Preto. 
Quando terminei o segundo grau, fui para Ouro Preto para fazer o curso pré-vestibular de engenharia, para a venerável Escola de Minas; passei no vestibular e após um mês de severo trote eu me tornei um acadêmico da nobre escola.
Ouro Preto foi amor a primeira vista: encantei-me com a cidade, com a sua história e com os seus fantasmas, suas pontes, seus casarões históricos e a sua gente. Parei, ouvi e senti a vila a transpirar ecos de assombros, sussurros dos conchavos dos inconfidentes, e sentimentos de dejá-vù de quase ter participado de encontros secretos e intrigas dos que conspiravam pela liberdade e independência do Brasil.
Durante minha vida estudei o Tiradentes, mas em Ouro Preto me encontrei com ele - nas ruas e botecos, tornei-me camarada do Jovem Alferes Joaquim José Xavier do Exército Imperial, conheci seus amigos e amigas e triste sentei-me na praça que hoje tem o seu nome, debaixo do obelisco que marca onde a sua cabeça foi exposta depois de esquartejado.
Mais foi a Vila Rica do que a Escola de Minas que mais abriu minha imaginação e me expôs a diversas facetas da vida artística, política, filosófica, literária e religiosa.  A cascata de novos estímulos polinou a minha mente e me deu uma renovada concepção da vida.

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Ouro Preto é uma cidade serrana, localizada nas montanhas das Minas Gerais a cerca de novecentos metros de altura, com uma temperatura sempre agradável, nem muito quente nem muito fria. Fundada em 1698, ela parece estar congelada no tempo.
A arquitetura de suas construções é um raro estilo barroco colonial português. Igrejas foram construídas como fortalezas, e há por toda parte esculturas de santos, feitas no século XVIII em pedra-sabão, espalhadas pela cidade e co-habitando com seus habitantes. Por força de lei, suas construções foram tombadas, e assim a arquitetura da cidade permanecerá preservada, sem mudanças. Mas isso não se dá com a sua vida artística e literária: ela se agita, desenvolve-se e cresce entre os estudantes e também entre os cidadãos em geral.
Naquela vila, deparamo-nos em suas ruas com artistas e seus cavaletes fazendo pinturas a óleo sobre tela; outros fazem escultura em suas praças, artesanato pelas esquinas e outros tipos de arte; o velho Teatro da cidade está sempre em atividade e há música erudita, cantatas e madrigais em suas igrejas barrocas.  Ouro Preto dos anos setenta vibrava com o Festival de Inverno, realizado no mês de junho – onde seminários de arte, literatura, fotografia e cinema eram oferecidos gratuitamente ou por um preço nominal às pessoas da cidade e aos turistas que vinham de outras partes do Brasil e até do exterior. Os preletores desse Festival – especialistas em suas respectivas áreas artísticas – amando também seus ofícios e a cidade, ofereciam gratuitamente a sua arte e o seu ensino aos participantes desses festivais de inverno.
  Por um decreto da UNESCO em 1980, a cidade tornou-se um Patrimônio Cultural da Humanidade, assegurando-se desse modo, a preservação da sua arquitetura, da sua arte, e suas construções salientes, tais como: o mais antigo teatro em funcionamento da América Latina, a primeira Escola de Farmácia e a segunda mais antiga Escola de Engenharia do Brasil, seus casarões do século XVIII em estilo barroco colonial, pontes de granito em arquitetura romana, estátuas do aleijadinho, pinturas e obras de arte, em suas igrejas e ainda vários cemitérios centenários bem cuidados, mas esquecidos pelo tempo.
  A UNESCO protege também dezenas de antigas igrejas coloniais portuguesas, construídas com sólidas paredes feitas de pedra, cal viva e óleo de baleia. Suas paredes internas ricamente ornamentadas com seus santos de aparência piedosa e anjos cintilantes, cobertos com uma fina camada de ouro em pó.
Essas velhas igrejas são depositárias de antigas pinturas sagradas a óleo sobre tela, e de envelhecidas imagens de madeira esculpida, colocadas sob tetos em arco. Cada igreja reflete o feitio pessoal de seus antigos freqüentadores. Por exemplo, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída por negros, livres e escravos, em meados do século XVIII, é considerada a única igreja barroca no Brasil com fachada arredondada e com anjos, imagens e santos de pele de cor escura.
No dia da sua inauguração, o nobre ex-escravo Chico Rei lá chegou em sua luxuosa liteira dourada, com vários de seus compatriotas por ele alforriados, para dançar em frente da igreja um africano congado.
A tradição diz que Chico havia sido um escravo que na África era da nobreza local e que comprou sua liberdade - bem como a de dezenas de escravos da sua nação natal. Ele tornou-se muitíssimo rico por explorar minas de ouro, e estabeleceu sua própria corte na nobreza portuguesa de Ouro Preto. Sob a proteção da Igreja Católica e de homens de negócio que aferiam lucros provindos de sua imensa fortuna, Chico Rei foi um dos Gaius Maecenas da Nossa Senhora do Rosário e de outras igrejas de negros da cidade.
Outro exemplo em que o feitio pessoal dos membros foi o que influenciou a natureza da congregação acha-se na Igreja de Nossa Senhora do Pilar, a mais suntuosa igreja barroca da cidade. Seus freqüentadores eram principalmente abastados comerciantes, políticos e ricos “cristãos novos”, que literalmente esbanjaram mais de quinhentos quilos de ouro em pó no rico e luxuoso interior dessa Igreja. A branca Igreja de Pilar não podia ficar nada atrás do negro templo do Rosário...
O ritmo e a cadência suave da cidade de certo modo decorrem do freqüente badalar de dezenas de sinos de igrejas. Seus toques fluem como melaço, ressoando de forma vagarosa o dia todo, sempre chamando para missas, casamentos ou funerais – e anunciando também a hora de Ângelus, dando a impressão de que, na maioria das vezes, os sinos badalavam uns para os outros, sem produzir som. Eles pareciam soar para aqueles que haviam se tornado surdos a seus apelos, soavam para a irreverência dos turistas, e o seu som era uma advertência às armadilhas dos novos tempos – um triste lamento diante de uma já passada era de diamantes, cavalos e carruagens, luxuosas liteiras, exóticas sedas chinesas, licores, vinhos do Porto, diamantes, esmeraldas e muito ouro.
Uma riqueza de valor inestimável de ouro e pedras preciosas foi explorada em Ouro Preto, mas a maior parte dela foi embarcada para a Corte Imperial de Lisboa, e uma porção menor, se bem que substancial, contribuiu para alimentar a Revolução Industrial na Inglaterra. As migalhas que foram deixadas em Ouro Preto, no entanto, foram suficientes para torná-la mundialmente uma das mais ricas cidades do seu tempo.
Por mais de um século, até o dia de hoje, estudantes têm vindo de toda parte do país para se alojarem em grandes casas coloniais, estabelecidas como dormitórios pela Universidade. Os estudantes as chamam de repúblicas, cada uma delas tendo um nome que tenta refletir as características de seus fundadores: Os menos religiosos estão na república de nome Vaticano; os mais sensuais ficam no Jardim de Alá; os nordestinos agremiam-se na Verdes Mares – e assim por diante.
Quando cheguei a Ouro Preto, antes de entrar na Escola de Engenharia, minha primeira república localizava-se bem perto da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, e seu nome era Buraco do Tatu. Este nome tem a ver com a condição de seus moradores, que viviam numa rua situada na extremidade mais baixa da cidade, perto da Igreja do Pillar.
A aldrava sobre a porta de entrada da república Buraco do Tatu era uma velha tampa de privada de madeira pintada de vermelho. Sobre ela estava, em letras brancas, a famosa frase atribuída ao imperador Constantino ao marchar contra Roma: In Hoc Signus Vinces. Essa infame aldrava, com um pouco da história bizantina, era um insulto aos bem-educados sacerdotes que conduziam procissões que passavam à frente daquela república, e mais ainda, uma permanente fonte de atrito entre os estudantes do Tatu e o povo devoto, em geral.
            Ao entrar na Escola de Minas, fui convidado a entrar numa república de estudantes de engenharia chamada Pureza, que ficava ao lado duma outra república, chamada Vaticano. Dizia-se que Pureza era tão pura como neve suja em beira de rodovias, mas na época, só conhecendo a neve em cinemas, pensava que toda neve era branca e linda... 
A maioria de seus estudantes, os assim chamados “os Puros”, eram bons meninos provindos de vários estados do Brasil. Eles eram um pouco desregrados, dedicados boêmios que tinham a reputação de serem beberrões, e, pior: em sua maioria, mantinha boas relações com as funcionarias da madame Santita, à guardiã do bairro proibido, localizado um pouco abaixo da Escola de Farmácia.
O povo da cidade nos tolerava, a menos que tentássemos sair com as moças da localidade – neste caso toda a tolerância terminava e eles tornavam-se tão “amigos” quanto foram os romanos de Átila. Somente com as moças que vinham de fora (turistas, por falta de conhecimento) e com as meninas da madame Santita (porque sabiam demais) é que podíamos ter encontros amorosos.
Nos primeiros anos da década de 70 a vida me era muito agradável: eu amava Ouro Preto e meus companheiros (meus “irmãos”, como dizíamos) da Pureza. A Escola era boa, e boa era também a comida servida no seu refeitório – e o meu futuro parecia ser promissor. Os que se formavam na Escola de Minas sempre encontravam um emprego com facilidade. Ouro Preto era um oásis de felicidade num país devastado por uma ditadura militar desde 1964.
Mas nesse assunto político eu não me metia e tampouco punha o meu nariz onde não era chamado; tentava me manter neutro em questões polêmicas e não confrontava os militares. Lia todo livro que me viesse à mão e estudava a história local. Dedicava meu tempo livre ao serviço de confortar e guiar mulheres solitárias que vinham como turistas em fins-de-semana e, por certo, sempre havia uma cerveja gelada que nos era servida nos bordéis da madame Santita.
Meus livros de estudo eram abertos o mínimo indispensável para eu obter uma média passável, e assim a vida me era confortável e muito agradável. Porem não demorou muito para que aquela situação tão boa de repente mudasse completamente.
O governo militar começou a atuar com maior prevalência sobre a população em geral. Em sua maioria, os estudantes por todo o país levantaram-se em protesto contra as injustiças, mas valentões da ditadura começaram a aterrorizá-los.
Que o diga o nosso querido João Bosco, hoje cantor e compositor e o César Maia, ex-prefeito do Rio, ambos ex-alunos da Escola de Minas sendo que o César, nome de guerra Do Cuzão, era nosso irmão da Pureza.
Menezes, um estudante de engenharia da República Amarra-Golo, desapareceu por algum tempo. Meses depois ele retornou à cidade: quieto, introvertido, bebendo muito, coxeando e andando com uma bengala. Sua perna tinha sido maldosamente quebrada.
            Alguns estudantes que não tinham papas na língua, que eram politizados e que protestavam contra o governo começaram a desaparecer.
Agentes enviados pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) entravam em nossas repúblicas estudantis para procurar livros “políticos”; por incrível que pareça Das Kapital de Marx era um dos livros colocados na lista negra, mas não o Mein Kampf de Hitler.
Revistas e jornais com idéias contrárias, como o Pasquim - e também as de conteúdo sexual, tais como Hustler, achavam-se na lista negra. O pessoal do DOPS divertia-se em apavorar os estudantes quando faziam diligências nas repúblicas, em altas horas da noite, sem os devidos mandatos legais – e, muitas vezes, os agentes exalavam bafos de cachaça barata.
Eles sempre traziam armas automáticas e submetralhadoras. Até mesmo livros escritos por Jean Paul Sartre, Franz Kafka ou um pôster de Mahatma Gandhi poderiam ser considerados subversivos e sujeitos a serem apreendidos e seus donos investigados dependendo do alto conteúdo etílico - ou do baixo nível cultural - dos policiais. A regra geral dos agentes do DOPS era a seguinte: em caso de dúvida a respeito de qualquer coisa, a regra era considerá-la subversiva.
Ouro Preto sentia-se abatida, tal como a população pensante da nação. Um irmão de Republica, Newton, apelidado de Esculacho, era um rapaz alto, esguio de boa aparência, que cursava o terceiro ano de engenharia. Um dia ele desapareceu. Diziam que seu pecado capital foi o de ter um pequeno pôster de Che Guevara, pendurado à parede de seu quarto, e que provavelmente ele o tinha para reforçar sua imagem com as namoradas com quem compartilhava o seu quarto. No pé do ouvido se dizia que ele e Do Cuzão bem como o Lincoln, “aprontavam” em Belo Horizonte, e se isto foi fato, que bom, e mais força para eles.
Quanto a mim, irritado, eu já falava abertamente contra a ditadura e depois do desaparecimento de Newton, comecei a abrir mesmo a boca, expressando-me livremente o que o que tinha em minha mente sobre democracia, liberdade e direitos constitucionais.
À boca pequena fui então informado de que o meu nome estava na lista negra do Departamento de Ordem Política e Social. Fiquei tão aborrecido e desgostoso com isso que nem mesmo comentei o fato com a minha família.

                                                             * * * * * *

            Meu pai havia sido um “pracinha”, que serviu com a FEB (Força Expedicionária Brasileira) durante a Segunda Guerra Mundial. Alem de ser um patriota era um homem bem respeitado e bem relacionado. Bastaria apenas arranjar uma declaração escrita por um advogado e por mim assinada, negando o meu posicionamento político, para que eu pudesse continuar a viver em paz. Mas eu não queria esse tipo ridículo de paz: eu já não me agüentava, estava farto de ver o meu amado Ouro Preto ser debochado, a minha República ser saqueada, a minha escola ser visada e muitos de meus amigos serem intimidados, escorraçados, mutilados ou desaparecerem.
Que o DOPS e a Ditadura dessa República de Banana fossem para o inferno!
Depois de dar de presente meus livros e outros pertences a alunos mais necessitados, e tendo arrumado numa mochila todas as roupas que nela coubessem, junto com documentos e meu passaporte, fui à estrada e dei início à minha jornada.

                                                            * * * * * *

Sem uma passagem para sair do Brasil de avião, caminhei pelas estradas e caminhos do Brasil. Cruzei as fronteiras para o Uruguai e para a Argentina; atravessei os Andes e cheguei ao Chile.
Peguei a rodovia Pan Americana, prosseguindo em direção norte. Caminhei, pedi caronas e caminhei muito mais ainda. Vi coisas que me deslumbraram com a sua beleza, outras que foram repugnantes e algumas me amedrontaram, mas nunca perdi o meu objetivo de sair do Brasil.
Fui caminhando e pedindo carona inicialmente para o Sul, cruzei os Andes e depois segui sempre para o norte até que um dia cheguei à Califórnia, nos Estados Unidos, um ano e meio depois.
O orgulho não me deixou pedir qualquer subsidio aos meus pais. Paguei meu curso universitário na América fazendo as entregas do jornal Los Angeles Times, e também dirigindo um caminhão de suprimento aos aviões no Aeroporto Internacional de Los Angeles.
Minha vida girava em torno do El Camino College. Fiz amizade com um professor, de nome Bruce Milton Brown, que, além de amigo, tornou-se meu confidente e guru intelectual.
As mesas do píer da praia de Redondo, e as do Centro de Estudos em El Camino tornaram-se o meu local de estudo. Os locais abertos junto ao lago Arrowhead e Big Bear ficaram sendo refúgios para mim, e uma Kombi Caravana me serviu para o transporte, casa de campo, casa de lago e residência de praia.

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domingo, 11 de setembro de 2011

RIO GRANDE DO SUL: PARADA ESTRATEGICA

Talvez as planícies dos pampas dessem mais visão aos gaúchos . Talvez as noites invernais, ao lado do fogo, da chaleira e a cuia de chimarrão os unissem mais. Talvez as campanhas abertas, os pampas lhes ensinassem mais a serem mais desprendidos e francos.

O gaúcho economiza em sofisticações desnecessárias e é liberal na simplicidade, na naturalidade dos quem tem auto-segurança, sem usar de muitos adornos sociais para reforçar as suas personalidades.

Também Bino notou o quão claro eles falavam. Parecia que ele estava escutando português em FM, com uma pronuncia compassada, quase que soletrada, com uma calma de mineiro e uma perfeição de imigrante relojoeiro.

Talvez a intensa imigração de diversos povos da Europa para o Rio Grande do Sul fez que naqueles Pampas de Babel, todos falassem um português o mais cla-ro pos-sí-vel, para facilitar o entendimento ao outro imigrante de diferente idioma, mas que também usava o português como língua franca, resultando daí o falar claro do sul-rio-grandense.

Bino se acostumou também ao jeito pau-sa-do e ca-den-ci-a-do  do Gaúcho falar, e de suas nuanças em seus falares locais,  cambiando entre o gaudério e o áspero, em situações  diversas e em querências distintas.

Outra coisa que Bino ficou fascinado era com o tal do “tchê”. E esta expressão estava indelevelmente associada em sua mente com o Guerrilheiro Cubano nascido na Argentina, seu pôster no quarto do Newton - e o seu desaparecimento.

Até então, para Bino, tal expressão era aplicável só para camaradas socialistas como o “Che Guevara”, mas com a “T” adiante, o tchê tornou-se Gauchês. 
  
Nas estradas do sul e desde que ele entrou no Rio Grande, esta expressão, tchê, começou a ter outra conotação em sua mente, ficando associada a carinho, amizade, calor humano e aconchego, parte da cultura do Tcheísmo.

O porongo ou cuia de mate, a arte de enchê-la de erva, os diferentes tipos de ervas, as bombas, ao tipo de bomba, o ritual do roncar do porongo e encher a cuia para o próximo, o “encilhar” do mate e a sensualidade de mãos nuas tocando a redonda cuia morna numa noite fria, tudo isto Bino via como a parte ritualística do Tchêismo e para ele era muito belo.
Ele sentiu pena dos muito brasileiros órfãos, que não tiveram a oportunidade de conviverem com aquela cultura.

Bino planejou descansar somente dois dias em Passo Fundo, lavar suas roupas secá-las e dobrá-las cuidadosamente na mochila, tentaria ganhar uns dois quilos dos sete perdidos, tomaria banhos quentes, longos e freqüentes, estudaria o mapa rodoviário e faria uma logística de estradas, de rotas alternativas até a Argentina.

No dia seguinte, Bino já tinha um plano de ação: Ele iria rumo oeste pela BR 285, pelas cercanias de Panambi ele rumaria sul pela BR 392 e pousaria na Universidade de Santa Maria, onde descansaria um dia e de lá tentaria de um só fôlego ir até Uruguaiana pela BR-158 e pelas bandas de Rosário do Sul se conectaria com a BR 290 indo direto ate Uruguaiana. Lá chegando, tentaria cruzar ponte internacional sobre o rio Uruguai que era a fronteira entre Uruguaiana, Brasil e Passo de los Libres, na Argentina.

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Paulo e Gundela convidaram Bino para jantarem um “prato típico” no apartamento deles no perto do campus e seria batatas com eisbein e sauerkraut e antes disso tomariam cerveja feita em casa e com wurst de tira-gosto.

Bino pensou que ficaria mais feliz com feijão preto, arroz, bife e batatinhas fritas, mas ele já havia notado que no mundo há vários tipos de comida e ele devia se habituar a tudo e, ademais, ele jamais iria ofender o prato “típico” que a Gundela queria fazer para o hóspede “mineiro” de Ouro Preto.

Paulo fazia a sua cerveja na cozinha e na sacada de seu apartamento, no terceiro andar havia uma barrica cheia dela. Tomaram vários Steins de cerveja e comeram tanto wurst frito na cebola que a Gundela dizia: – Olhe guris, guardem um pouco de espaço para a janta!
Nunca comida alemã desceu tão bem em Bino. Até o joelho do porco estava ficando bonito e o chucrute, doce. Depois, de sobremesa, veio uma linda cuca de morangos feita em casa, com sorvete de baunilha.

A temperatura esfriou e eles foram curtir o frio na varanda do apartamento,  tomaram um vinho, e ouviram muitas bossas novas, a Gundela colocou também musica da Bavária e tomaram mais vinho, e riram, e parecia que fechariam com chave de ouro uma das noites mais descontraídas na jornada do Bino.

Depois se provou o velho adágio que diz in vino veritas! Gundela contou algo sobre a sua família:

– Meu pai era Capitão do Exército. Era durão, mas justo e respeitado por todos. Ele pautava a sua carreira estritamente pelo código militar. Aí os milicos lhe convidaram a entrar no DOPS e na ocasião ele pensou que iria prender terroristas, mas cedo ele se decepcionou, e Gundela deu uma Pausa torcendo as mãos, e se recompôs e continuou:

– Ele era carinhoso em casa, abraçava a mãe e minhas duas irmãs e eu, mas ele foi  mudando, e começou a beber muito. Ele bebia até de manhã, ela disse abaixando a cabeça e limpando os olhos em seu avental, continuou:

 – Foi ficando quieto e desligado, continuou Gundela, há dois anos ele se matou dentro do escritório Central do DOPS em Porto Alegre, enquanto esperava instruções de um General sobre uma “Operação Especial”, na Capital.

– Note bem Vitali, continuou Gundela, – O Dr. André, o pai do Paulo, teve a sua casa invadida e toda revirada às duas da manhã! Eles não encontraram nada comprometedor e saíram frustrados. A Babuska, como nós chamávamos a Vó, a mãe do Dr. André, era de idade e quase teve um ataque do coração.

E Paulo continuou o relato:
– Vitali, a Babuska, que significava vózinha em Russo, começou a ter sonhos de que meu pai estava morrendo numa avalanche de livros. E para acalmá-la meu pai queimou todos os seus livros de história da Rússia e alguns eram do tempo do Czar.

Depois de dois meses deram outra batida em nossa casa de madrugada e cinco dias depois a Babuska morreu de um ataque do coração. E disse seco: esses macacos são uns filhos de umas putas

Paulo saiu quieto ao banheiro e voltou com uma garrafa de vinho, encheu sua taça e sem perguntar encheu todas as taças.
Houve um silêncio e Bino enfiou o rosto entre as mãos e assim ficou quieto, mordendo a sua língua.

Vitali, disse Paulo: – Se a Gundela não estivesse grávida, eu entrava na resistência.
– Pelo amor de Deus, Paulo, implorou Gundela, ai tu farias o mesmo que fez meu pai, mas ao inverso! Violência gera violência, tu sabes bem disto.
– Desculpe-nos Vitali. Você está aqui como nosso convidado, bebemos um pouco mais e começamos a falar muito...

– Sabe Vitali, disse Gundela, aqui a gente não pode desabafar. Nem aqui, nem em lugar nenhum. Agora tu és um novo amigo, carregas uma mochila, gaudério e todo faceiro conhecendo o mundo, aí a gente sentiu mais coragem para desabafar, entendes...
Bino levantou a cabeça de entre suas mãos e seu rosto estava coberto de lagrimas. Ele disse:

– Estou cansado de viver em mentiras, disse ele sério e também não sou gaudério: terminou o seu copo de vinho de uma só golada e continuou:
– Meu nome real é Bino Tedesco e ele começou a contar a sua estória bem devagar:
 – Por causa de um mísero pôster de Che Guevara, no quarto de um amigo que dividia o apartamento comigo no interior de São Paulo, eu ando fugindo para a Argentina e tenho os macacos atrás de mim. Alguns amigos que me ajudaram na fuga agora estão na lista negra dos macacos e um, seguramente, deve até estar morto.

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– Vitali – desculpe - Bino, eu creio que será melhor tu trocares de planos, disse Gundela apreensiva.
– Concordo plenamente com você, disse Paulo a esposa.
– E que devo fazer? Perguntou Bino.
– Deixe me ver a sua carteira de Ouro Preto.
Bino passou a carteira a Paulo e este a estudou longamente e disse: – Parece boa. Você é mesmo da Escola de Minas?
– Não, disse Bino eu sou estudante de engenharia, mas não de lá.
– Não passe tanta informação Bino. Mesmo aqui você tem que se policiar
– Paulo eu já estou cansado de mentir.
– Descanse Bino, e depois continue mentindo descansado, pelo menos durante certo tempo, e Paulo continuou: – Sabe Bino, creio que é melhor você pegar outra identidade estudantil?
 – Por quê?
– Suponhamos que você precisa mostrá-la. Com uma rápida investigação eles verificarão que você não estuda lá e você estará frito. Amanhã tiramos umas fotos e amigos de confiança lhe darão uma carteira com nome de uma pessoa que realmente estuda jornalismo aqui.
– E como eu vou justificar estar longe da escola?
– Ah você está de matricula trancada ou alguma coisa nesta área. Vamos fazer de você um colono da região, disse Paulo rindo.
Gundela adicionou, – Paulo, o Arthur está com a matricula trancada.
Paulo disse: É Bino, eu penso que seu nome agora será Arthur Lange.
– E esse tal Lange é também procurado?
– Que nada, ele é um boa vida – ele deve andar esquiando na Europa ou Bariloche..
– Vitali... Ah que hábito ruim. – Bino, tu tens contato lá na fronteira? Perguntou Gundela.
– Não sei ao certo. Eu tinha um número telefone, Gundela, mas em vista do que está acontecendo eu não sei mais de nada.
– Esqueça deles Bino, falou Paulo com firmeza. Eu creio que todo o seu esquema deve andar comprometido. Quem sabe se sob tortura alguém não deu com a língua nos dentes? Temos que procurar alternativas.

Bino pensou no Antônio e disse: – Bem sob tortura tudo e possível. Acho melhor fazermos outros planos, mas não sei o que pensar nesse momento.

O Paulo Lewaschin era bom em resolução de problemas, bem sabido em manipular papéis e tinha uma mente de mestre de xadrez. Ele pensava em tudo, em todos os detalhes e estava sempre vários movimentos a frente do Bino e Gundela. Analisou a situação de Bino sob vários cenários e tinha solução para cada situação e caso esta não desse certo ele tinha sempre um plano “b” alternativo para todas elas.

Naturalmente, era certo que Paulo andava fazendo isto antes; ele estava muito esperto, mas Bino nada perguntou e nem informações foram dadas.

Bino amanhã você vai sair do alojamento e escreva na portaria “Arroio Grande” como seu próximo destino. No caso de alguém se interessar por suas andanças, imediatamente eles vão pensar que você vai tentar entrar no Uruguai pela fronteira Jaguarão – Rio Branco. E deverão acreditar nisto mesmo porque Uruguai não está sempre recambiando refugiados políticos. Temos que esperar que as coisas se esfriem na fronteira. Mas vamos pensar no presente primeiro. Saindo do Alojamento ponha Arroio Grande como sua próxima parada.

– E amanhã, para onde eu vou?
– Calma Bino. Amanhã você sai de Passo Fundo oficialmente para Arroio Grande. Você andará até a rodoviária e eu estou lhe esperando em frente da igreja católica. Quase do lado da Rodoviária. Aí, eu ou a Gundela lhe pegamos lá e lhe trazemos de volta - e você ficará uns dias conosco, aqui no apartamento. Nada de campus.

Para que você não morra de tédio vamos levar você a alguns lugares seguros - mas para a Escola, você já foi embora.

– E a fronteira, quando cruzaremos?
– Cruzaremos no momento certo. Nós lhe levaremos até Uruguaiana, quando a coisa estiver mais fria. Você cruza a Ponte como se fosse um brasileiro da região. Gundela atravessa a ponte com a sua mochila no nosso carro. Aí ela lhe pega e você estará de volta ao velho plano. Paulo pensou em suas palavras e disse: – A propósito qual era o velho plano?


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Chegaram antes das doze com um amigo, comeram e depois o amigo da escola tirou
a foto de Bino para a carteira de identidade e o dia se passou sem nenhuma outra novidade.  Às oito da noite Paulo levou Bino para conhecer um CTG, um Centro de Tradição Gaúcha.

O CTG era colorado e se chamava Lalau Miranda, estava em dia de festa e muito animado. Bino pensava que conhecia algo sobre os gaúchos, mas lá ele viu quão ignorante ele era sobre a cultura daquele povo.

Havia todo o tipo de gente em trajes típicos andando ao redor de inúmeras mesas postas num amplo pátio, havia vinho em abundância e um cheiro de carne  assada na brasa permeava o local e dava fome a Bino.

As mulheres trajavam-se também a gaúcha. Algumas estavam com botas, vestidos rodados e compridos até os tornozelos, umas com tranças, outras de cabelos naturais e soltos; eram mulheres, em sua maioria, altas, bonitas e eram chamadas de “prendas”.

Algumas delas estavam de ponchos elaborados e finos, outras de lenço colorado e algumas a Anita Garibaldi, como adorno típico levavam  facas - não muito escondidas - nas botas ou na cintura, usavam diversos tipos de lenços vermelhos no pescoço, tinham vestidos compridos com elaborados cinturões de couro.

Os homens usavam  bombachas brancas, botas e cinturões adornados de prata, e freqüentemente tinha um revólver a cintura. Seus ponchos eram mais grossos de lã de ovelha, chamados de pala e também estavam de lenços colorados ao redor do pescoço e alguns presos por anéis de prata. Outros usavam um pequeno chapéu de feltro, geralmente negro, bem diferente dos que Bino já tinha visto.

As facas dos gaúchos tinham bainha de prata trabalhada e com motivos campestres e eles as usavam para cortar as carnes, que queimavam abundantemente em duas churrasqueiras enormes. Alguns carregavam até revólveres e depois o Paulo disse que para os CTGs, não havia problema em levar os revólveres, uma vez que eles estivessem descarregados.

A música era vaneirão e fandango, e algumas vezes um grupo de homens dançavam a chula, sapateando furiosamente num tablado. Mas também no Rio Grande do Sul da época se ouvia muito as músicas do Teixeirinha, que a propósito, disseram ao Bino que ele era também da região de Passo Fundo.

O churrasco era bem diferente do resto do Brasil: A carne era assada em porções enormes num fogo aberto na churrasqueira que parecia mais um braseiro em nível do chão; e aí, espetadas em estacas cravadas em ângulo no chão, havia cortes de carne de todos os tipos.

A faca dos Gaúchos do Lalau Miranda não era de adorno, pois nas mesas do CTG não havia facas; cada gaúcho usava a sua e com elas eles sempre tiravam um pedaço de carne do fogo para provarem e ninguém se importava porque havia carne de sobra.

Na cantina se vendia cerveja de barril e vinho em garrafões de cinco litros, quase todos estavam bebendo bem, mas o ambiente sempre familiar, tudo era tradição, era alegria, e fartura e aqueles CTGs, pensou Bino, poderiam ser os templos da Religião “Tchêísta”.

Ali no CTG, o falar Gaúcho era ainda mais compassado e cheio de ibérico. Várias pessoas passaram pela mesa do Paulo e Gundela, que também estava vestida de prenda. Na boa tradição do gaúcho interiorano, sempre antes de se apresentarem, começavam o “dedo de prosa” com um “Bueno” e freqüentemente agradeciam com um “gracias” e não faltava um “porongo” ou uma cuia de mate, tamanho família, para lavarem o bem fígado e eliminarem todo o mau colesterol antes de irem para as suas casas.

A Gundela tinha dado um lenço colorado ao Bino e aquele lenço no pescoço abria ainda mais a ele as portas da cordialidade. Alguns convidados passavam pela mesa deles, gastavam um dedo de prosa amiga com Paulo e Gundela, eram apresentados ao Bino, e outros até se sentavam a mesa e contavam um ou dois causos ao forasteiro.

Na mesa ao lado deles sentava-se o Paulo Roberto Pires e a sua linda esposa de cabelos negros, sedosos e compridos e de um sorriso enigmático. Ele era o Diretor do jornal O Repórter, de Passo fundo.

Conversaram bastante com os Lewaschins e o Bino; Paulo Roberto tratou Bino como um igual, como ele também fosse um jornalista, e mais uma vez ficou-se comprovado que o Tchêismo não era somente propriedade exclusiva dos Gaúchos mais simples, mas era generalizado até aos mais cultos e sofisticados.

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Ele ouviu estórias e historias de entreveros entre Colorados e Blancos.  No passado os Chimangos Republicanos, eram inimigos mortais. Os Chimangos usavam de lenços brancos, e os revolucionários Maragatos, eram os de lenços vermelhos.

Mas passadas as peleas antigas, agora, irmanados na cultura gaúcha, eles orgulhosamente ainda mostram as suas cores, em seus lenços nas suas festas e churrascos, - mas cada qual em seu CTG.

Para Bino a coisa agora não passava de uma rixa como a de Gremistas e Colorados sem maiores conseqüências - e com mortes muito esporádicas... Agora quase todas as manchas de sangue foram lavadas pelo tempo, e em Passo Fundo os Colorados seguem a tradição do Bento Gonçalves no Lalau Miranda e os Blancos as suas, em seu CTG, o Getúlio Vargas.

Agora todos eram somente gaúchos, uma gente altaneira de um bravo estado. Não sendo Bino do Rio Grande do Sul, pensava que ainda não sendo gaúcho, mesmo assim morreria cantando o Hino de Ataque dos Colorados. Bino iria morrer Colorado - e isto estava decidido e inegociável.

As cinturas das calças do Bino já estavam mais apertadas. É difícil se comer, ou beber, ou se divertir pouco no Rio Grande do Sul. A cerveja no Lalau Miranda rolava solta. Gaúcho não admite o copo, prato e a cuia de mate de um convidado ficar vazio. E quando se servia a carne era em grandes porções e num ritmo rápido e furioso, pensou Bino.

A cerveja começou pegar um pouco e Bino via as lindas prendas e os amigos gaúchos, crianças e velhos naquela linda coreografia de alegria; ouvia os risos, os sons, as músicas e os falares; cheirava os perfumes, o churrasco e a comida: Tudo naquela noite era bonito e o CTG Lalau Miranda era o céu na terra.

Calado ele olhou para o céu aberto com centenas de milhares de luzes cintilando sobre os pampas, e visivelmente ele delineou o Cruzeiro do Sul e sentiu um aperto no peito e disse para si próprio:

– Que pena. Ficaria feliz se a minha jornada pudesse  terminar aqui...

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