domingo, 11 de dezembro de 2011

UMA ALIANÇA INFELIZ DA DITADURA

Ele chegou a rodoviária, sentou-se num banco ao lado do guichê que vendia passagens para Tulcan, na fronteira do Equador com o sul da Colômbia.  Até a noite Bino tinha que deixar o Equador, pois seu passe de três dias expiraria.
No mapa ele calculou que indo pela Rodovia 25, que era simplesmente a continuação da Carretera Pan Americana, a distância seria de 350 quilômetros, e calculou, que pelas freqüentes paradas do ônibus e pelo estado das estradas no país, que, no mínimo, a viagem seria de oito horas.
Bino queria sair no primeiro ônibus as seis da manhã: Apesar do Equador não ter fronteiras com o Brasil e ele temia que houvesse troca de Telex entre as autoridades militares equatorianas e o DOPS do Brasil e ele pensou que na Colômbia, sob um governo de civis, ele estaria mais protegido.
Às cinco e meia Bino comprou seu ticket para Tulcan e estranhou que o preço fosse tão baixo, até que ele visse o “ônibus” chegar.
                                                  
                                                              
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O ônibus era uma adaptação de carroçaria de madeira, incluindo os assentos montados numa estrutura de um caminhão americano International. Era um pouco melhor do que o nosso pau-de-arara brasileiro, só pelo teto de madeira e umas lonas com plásticos transparentes que se rolavam pelas laterais protegendo os passageiros em caso de chuva.
As malas iam por uma escada atrás do “ônibus” para cima do teto de madeira, colocadas em um berço de ferro e cobertas por lona e amarradas por cordas e mais: em cima com as malas um policial solicitou ao motorista que levasse dois pobres coitados, provavelmente indigentes e estes não podiam se proteger debaixo da lona em caso de chuva. Pelo menos estes pobres coitados ficaram com as melhores vistas dos Andes.
Dentro do baú de madeira era um carnaval caótico. Jovens mestiços tocavam violão e cantavam “cuencas” com ajuda de uma “charanga” improvisada, garrafas de pisco eram passadas entre alguns passageiros, antes mesmo de sair “a coisa”, senhoras nativas já passavam as suas tortilhas e tamales entre si e muitas delas já estavam de peito para fora acalmando seus rebentos.
Havia passageiros levando iguanas precariamente amarradas por embiras, e este animal era um prato entre os nativos, ainda mais apreciados do que galinha.
Na metade da viagem uma desses iguanas se desvencilhou de sua amarração e saiu correndo por baixo dos pranchões de assento e foi um Deus-nos-acuda, com um pobre índio velho, meio embriagado, se metendo debaixo dos assentos e os mais jovens o sacaneando espantando o lagarto-almoço, enfim o ônibus teve que parar, a iguana foi caçada, presa e amarrada, e depois seguiu-se viagem.
                                                  
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Como a cabine estava cheia de passageiros, Bino subiu numa carroceria de quase três metros de altura, carregada de cenouras e se acomodou no topo do mundo, como se fosse o Monarca das Cenouras, e seguiu viagem por mais uns 135 quilômetros no topo dos Andes em estrada perigosa, estreita e de barro até a cidade de Pasto.
De cima da carga de cenoura Bino pode apreciar as montanhas e o vale a mais de mil metros abaixo, rolando-se até a lateral da balouçante carroceria ele ficou a olhar as rodas do caminhão, tão perto do abismo, negociando a lama vermelha que  espirrava em todas as direções.
 A estrada não tinha cercas de proteção  e muito menos acostamento. A fome apertou e Bino começou a comer cenouras, O frio das montanhas era intenso e havia uma garoa muito úmida, Bino retirou a sua jaqueta azul de náilon da mochila, desenrolou seu saco de dormir, entrou nele e se aninhou debaixo de uma lona esfarrapada que cobria só parte das cenouras.
Ainda era frio, e de novo ele pegou a mochila, tirou o seu poncho e a sua garrafa de pisco e deu duas goladas grandes e a guardou.  Depois enrolou o poncho e o transformou em travesseiro. A carroceria do caminhão continuava a balançar e ele se preocupava com a estrada, mas entregou seu destino aos deuses e dormiu profundamente, sonhando com praias ensolaradas e de por de sois amarelo-cenoura.
                                                
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Acordou em Pasto muito cedo de manhã, o e motorista do caminhão gritou para cima da carga:
– Eh, Brasilenho, te invito a un desayuno Pastusco!
E novamente a amabilidade Andina se fez presente: Foram a um modesto banheiro e em seguida sentaram a mesa de uma construção antiga de alvenaria que era um armazém ao lado de um posto de gasolina.
O motorista pediu um café da manhã com Huevos Rancheros, que era feito refogando-se tomates picados, com pimentão e bastante cebola, cheiro verde e depois se colocava um pouco d’água e três ovos, fechava-se a tampa da frigideira, cozinhava-se os ovos no vapor por pouco tempo, colocava-se mais salsinha e coentro sobre eles e logo em seguida os serviam na frigideirinha, com pão, manteiga, queijo e um café forte, delicioso e aromático, numa caneca esmaltada.
Estes Ovos Rancheiros era o café da manhã reforçado dos campesinos locais.
                                                         
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Bino ainda estava na mesa com o motorista amigo e na mesa do lado sentou-se um motorista dirigindo um caminhão tanque e após conversa entre os dois motoristas Bino conseguiu uma carona de boleia até Cali.
O caminhão saiu a tarde e ao cair da noite estava no Vale do Rio Cauca. A estrada foi se apertando:  para o oeste a parte ocidental do maciço andino que faz fronteira com a floresta Amazônica e para o leste por um outro braço do maciço dos Andes e, a visão gigantesca desta bifurcação dos Andes mais a estrada enluarada  bordejando o rio Cauca era simplesmente linda, e Bino se sentiu pequeno naquele lugar.
As três da manha o caminhão tanque subia gemendo e engatado em marcha forte em direção ao Maciço Leste, e subiu por muitos quilômetros de asfalto mal cuidado, até que de manhã eles chegaram a uma linda cidade chamada Cali, localizada num platô a dois mil e seiscentos metros de altura.
Cali é uma cidade pujante, limpa, européia, com amplas avenidas, edifícios modernos, uma universidade de primeira linha e um campus grande e bem bonito.
Bino conseguiu hospedaria no campus, e lá fez amigos entre os estudantes que lhes deram mais endereços de outros amigos que estavam no campus da Universidade de Bogotá, na capital federal, e também no campus da Universidade de Medellín.
Lá pela primeira vez ele conheceu a arte do mundialmente  renomado pintor Botero e também conheceu mais a fundo alguns livros, ainda não publicados no Brasil,  de um grande escritor colombiano, da cidade litorânea  de  Cartagena, o Gabriel Garcia Marques.
Bino leu ávida e rapidamente um de seus livros, escrito de modo realístico e simultaneamente fantasmagórico, chamado Cien Años de Soledad, e ao terminar de ler Bino sabia que também na literatura, Colômbia possua um Campeão Peso Pesado.
Na Universidade de Colômbia em Cali, com os estudantes de Arquitetura, Bino adquiriu um gosto por uma aguardente muito boa, chamada Cristal, forte como uma boa caninha brasileira, mas com um toque de anis que a “arredondava” ainda mais ao descer esôfago adentro. Também com os estudantes bebeu o famoso Tinto, um café expresso, feito dos melhores grãos dos cafés colombianos que se tomava imediatamente após ser passado. Além do gosto, o aroma do café colombiano era único, até para Bino, criado em zona cafeeira.
Muitos dos estudantes de Cali, após beberem o tinto, sempre fumavam um cigarro barato, sem filtro, de tabaco negro, chamado Piel Roja, ou Pele Vermelha. Um dia depois de umas doses de Aguardiente Cristal, Bino quis fazer graça fumando um dos Peles Vermelhas oferecidos por uma estudante de Literatura. Bino passou mal e foi forçado a perder um belo almoço.
De volta à turma, ainda meio mareado e esverdeado, ele foi motivo de chacota amiga por não manusear bem o mata-rato e principalmente por suas botas pastuscas, pois os intelectuais de Cali tinham, enganosamente, a concepção de que os Pastuscos eram brutos e burros – e, paradoxalmente, eram admirados por sua simplicidade, honestidade e ética de trabalho.
Pela Colômbia afora Bino sempre notou esta relação amor-ódio entre os citadinos e os camponeses das montanhas, genericamente chamados de Pastuscos.

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Depois de alguns meses na estrada, o mochileiro começa a adquirir um sexto sentido sobre uma determinada cidade, com um companheiro de estrada ou até mesmo com a carona que lhe está sendo oferecida. Bino não podia explicar isto em palavras, mas era um sentimento que não vinha do intelecto, mas talvez do hipotálamo, algo intuitivo ou visto pelo terceiro olho, como diziam os amigos Krishnas.
Bino sentiu que havia alguma coisa muito errada com aquela linda cidade florida e de eterna primavera. Em condições normais, sustentada pela economia local Medellín não poderia, como New York e Paris ter tanto vestidos de grife famosas pelas suas ruas, tantas jóias caríssimas, e uma estranha entourage de tiras de guarda-costas vestidos de ternos custosos e em carros importados dos EUA e da Europa. Aquele padrão de vida, aqueles bares servindo algumas vezes champanhe de vinte mil dólares aquilo não era produto da economia formal da área.
Às noites na cidade eram longas, festivas, comemoradas em restaurantes finíssimos sempre cheios e o mesmo com as discotecas; corria muito dinheiro vivo, e até havia muitas vadias de luxo, também importadas dos EUA, Europa e ate do Brasil. Havia muita cocaína rolando. Não faltavam carros de luxo, limusines, muitos “turistas” com guarda-costas, muitos gorilas trabalhando de segurança...  Algo em Medelín não andava certo.
Era o comércio de drogas. De cara no campus, ele foi informado do pó luminoso que cobria a cidade, mas parecia que a maioria dos estudantes era complacente com a situação: bem, os gringos buscam o pó, aqui se tem muito, é só uma mera questão de oferta e procura, era o raciocínio quase universal.
Outros iam mais além dizendo que o problema era na demanda, sem ela não haveria produção, daí as drogas na Colômbia eram um problema sim, mas um problema causado por norte-americanos.
Eles pareciam estar cegos que o problema  já tinha se tornado  também dos supridores, dos colombianos, com bandos de crianças viciadas em Bazuco, já não mais vivendo com suas famílias e que dormiam promiscuamente nos bueiros de Santa Fé de Bogotá; com tiroteios nas favelas; com assassinatos dia e noite; bombas explodindo em jornais da capital, intimidando a imprensa e mais - com a dissolução familiar, prostituição infantil, e violência urbana em geral.
Um dos estudantes que Bino encontrou no refeitório, que defendia o tráfico, estava de olhos vermelhos, falava rápido e desconexo, mãos trêmulas, e, por trás de todas as suas argumentações sócio- econômicas postas de maneira lúcida e elegante, com lógica amparada no princípio de Colbert, a lei de oferta e procura, por trás de tudo aquilo,  era puro sofisma: Bino falava com um viciado que nem mais atinava para a realidade.
Depois desta “palestra” Bino decidiu que viu o bastante da bela e sedutora Medellín, dos anos setenta e que já era tempo de ganhar a Carretera Pan Americana para o norte.
Estudou seu mapa e decidiu que sairia cedo no outro dia e iria até Chigorodo e de lá pegaria outra carona até Rio Sucio, tentaria entrar no Panamá pelo Parque Nacional Darién.
Uma vez no Panamá, Bino tentaria de um modo qualquer a ser decidido lá, se re-conectar com a Pan Americana Norte na cidade de Yavisa, no Sul do Panamá.
No Café Universal se reuniam bastantes mochileiros e alguns hippies e Bino foi lá a tarde para ver se conseguia alguma informação de primeira mão como negociar a problemática fronteira, com pouquíssimas estradas, onde a Carretera Pan Americana parecia sumir.
A sua primeira decepção foi com as notícias dadas a ele por um casal de mochileiros alemães, que se julgavam com muita sorte de terem sobrevivido àquela fronteira e voltado para Medelín, depois de muitos dias perdidos na floresta e fugindo de guerrilheiros.
Eles afirmaram que o tal do Passo do Darién era simplesmente impassável. Era uma área de quase cem quilômetros de terreno difícil, montanhas, rios caudalosos, cheio de bandidos, forças colombianas para-militares e guerrilheiros das FARC, ou Forças Armadas Revolucionárias Colombianas.
“Por lá você não passa”, disse o alemão bem direto e reto. Bino se sentiu frustrado e impotente com estes cem quilômetros intransitáveis adiante dele, numa rodovia que saia praticamente do pólo sul, ou seja, da Patagônia, cortando todas as Américas até os gelos do Alaska e só com a exceção de menos de cem quilômetros entre Colômbia e Panamá incompletos.
Porque a Pan Americana desaparece nessa fronteira? E ninguém tinha uma resposta definitiva.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Bino - o mochileiro

Bino, no começo, ressentia o termo mochileiro, quando aplicado a ele. Com o passar dos meses, ele notou que os mochileiros eram uma sub-cultura que de fato existia nas estradas e que de uma forma, rotulado nela, o ajudava a disfarçar a sua condição de fugitivo. Daí para diante ele abraçou o termo mochileiro sem ressentimentos.
Bino passou a estudar e definir os grupos de mochileiros que ele encontrava. Existiam vários tipos deles, com distintas características.
Por exemplo, seus equipamentos, suas mochilas e conteúdos eram específicos e mais do que isto, eles tinham um implícito “código de estrada” mais ou menos universal no que diz respeito ao seu bem estar e sobrevivência.
Se um mochileiro adoecesse na estrada todos ajudavam. Ou com remédio, ou procurando hospitais, apelando para conhecidos e no último caso até trazendo-o à sua família.
Eles sempre trocavam entre si informações sobre pousadas, albergues e escolas e também locais amigáveis e hostis a eles. Esse acervo de informações era repassado ao se cruzarem nas estradas lhes permitindo a ter um plano de ação formado muitos quilômetros antes de chegarem a seu destino.
Também se informavam e repassavam o conhecimento sobre fronteiras entre países ou províncias que os hostilizavam ou facilitavam; para os que usavam drogas, havia sempre informações onde ela poderia ser obtida, qual local era perigoso obtê-las ou a penalidade em usá-las em determinadas cidades ou locais.
Geralmente nos anos 1969 a 1970 a droga mais usada era a maconha e o pessoal que “fazia” drogas pesadas usavam o LSD. Os mochileiros usuários de drogas estavam em outra categoria, mais para o lado dos hippies do que dos mochileiros propriamente ditos, mas apesar da distinção, eles também se ajudavam mutuamente, apesar de andar pelas estradas em diferentes bandos.

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Entre os mochileiros era pecado mortal negar cigarros ou deixar de dividir a comida. A fama de um mau mochileiro, ou grupo destes, geralmente andava dias a frente deles – e a comunidade se afastava deles como se fossem infetados de peste bubônica.
Para um mochileiro sobreviver nas estradas já era bem difícil - e não havia necessidade de aumentar mais os riscos com má companhia e “mesquinharia” era considerada um crime muito mais além do que o uso de drogas.
Bino poucas vezes viu um bêbado no meio deles. Mas, geralmente, eles davam o chamado tapa-no-macaco ou tapinha - que era fumar um baseado.
Na América Latina não se levava drogas, pois as penalidades por conta delas eram bem altas. Quase todos os mochileiros sabiam de um ou mais conhecido que pegou de dois a dez anos de cana, em prisões desumanas por causa de drogas, então a maioria dos mochileiros andava de cara limpa.
Havia também todos os tipos e nuances de pessoas pululando as estradas com mochilas nas costas: Alguns estavam lá por turismo barato, outros em férias, outros procurando um sentido na vida, alguns fugindo de guerras, tentando entrar ilegalmente num país e só Deus sabe o motivo de cada um; mas este tema de “por que um foi para a estrada” era privado e era tabu bisbilhotar sobre o assunto.
Também Bino aprendeu a descobrir a história de viagens do mochileiro pela sua mochila, suvenires, roupas ou acessórios.

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Os americanos usavam mochilas grandes, de náilon reforçado, acolchoadas, confortável nas costas, e com armação de alumínio geralmente em cores bem chamativas e refletores de luz por medida de segurança na estrada. Elas tinham vários compartimentos e nelas era fácil de organizar as coisas. As mochilas dos americanos eram como a da amiga Gandira: cheias de souvenires e decalques dos locais por onde passaram eles.
Era um tipo de exposições das “medalhas de honra ao mérito”, de locais conhecidos, de “moral de estrada”. Os americanos também sempre tinham algo bom de comer em suas mochilas como carne e sopas desidratadas, chocolate, sabão, sabonete e xampu sem falar em pente, escova e pasta de dentes. Alguns até levavam uma mini barraca e um fogãozinho a gás, butano, canivete suíço e kit de primeiros socorros.
Carregavam também sempre um livro. Andavam de passaporte e bem documentados e traziam também com eles até cheques de viagem.        
Diferentes do resto dos mochileiros, os americanos e europeus eram respeitados como cidadãos em suas respectivas embaixadas, em caso de necessidade se faziam presente e lhes davam assistência. Este tratamento de suas embaixadas fazia com que eles fossem menos escorraçados pelas autoridades locais e algumas autoridades tinham até deferência por eles, os elevando a categoria de “turistas”.
Também eles sempre tinham informações de banhos públicos e onde se vendia isto ou aquilo. Os americanos tinham por uniforme, calças Lewis de jeans, óculos escuros, boné, camiseta e tênis confortáveis para a caminhada. Geralmente todos eram brancos e Bino nunca viu um negro, por estranha razão, entre eles.
Já os mochileiros europeus e canadenses eram simplesmente uma versão mais modesta dos americanos. Suas mochilas eram também de ótima qualidade, porém voltada mais para a durabilidade e essenciais - com cores menos berrantes, como verde, azul e marrom.
Eles também tinham sempre algo de comer em suas mochilas, mas era algo local, comida adquirida na estrada, Por exemplo, pão e queijo; tinham também café instantâneo, cigarros, lanternas e sempre com uma bandeirinha discreta de seus países colada a mochila. Era comum ver os europeus com uma dúzia ou duas de bananas penduradas em suas mochilas. Eram parcimoniosos com os decalques sobre a mochila e sempre tinham um vinho marca diabo com eles para desinfetar seus estômagos da comida local.
Diferente dos americanos eles quase sempre falavam vários idiomas, andavam com dicionários e sempre tentavam falar e aprender com os nativos. Os europeus não tinham tanta mania de banho quanto os latinos e americanos, tinha mais odor corporal e suas mulheres muitas vezes não barbeavam os sovacos. Usavam mais botas de trilha ou de escalada de montanhas, dificilmente se via um deles de tênis; eles também eram bem seguros com o dinheiro.
Já os argentinos, chilenos, uruguaios e latino-americanos em geral, eram mais pobres. Suas mochilas eram menores, de lona, mais modestas e algumas foram até acampadas das forças armadas de seus países. Eram bolsas quadrangulares ou triangulares com alguns bolsos e correias de couro e não tinham armação de metal, ou divisões.
O carregamento destas mochilas exigia certa logística nas camadas dos itens nela contidos. Os itens de maior e mais uso, iam sempre à parte superior, roupa lavada no meio e as sujas em baixo, quando possível enrolada em sacos de plásticos e quando não, iam perfumando as roupas limpas com cheiro de roupa usada.
As mochilas dos latinos geralmente eram pequenas, para os mochileiros de curta distância, como por exemplo, de Chile a Equador, e geralmente tinha a capacidade de 10 quilos de carga; as maiores, como a do Bino, era dos mochileiros de longa distância, era capaz de carregar até uns 25 quilos e eram maiores. A mochila “latina” também era reforçada com cantoneiras, fundos e tiras de couro e nada tinham de sintéticos. O couro de proteção evitava o esgarçar da lona depois de muito uso.
Também os latinos usavam tênis mais modestos, tipo o “Conga”, também usavam jeans ou camisetas, mas sempre usavam ponchos ou abrigos de lã. Muitos carregavam violões em suas jornadas e vez por outra um argentino trazia junto à mochila o seu bandoneón que é um tipo de concertina – o que Bino considerava um “trambolho” desnecessário.
Também sempre havia um vinho barato com eles e dormiam onde podiam: Em postos de gasolina, albergues, igrejas e escolas. Usavam de torneira, rios e riachos para banhar-se – mas tinham que ter os seus banhos diários.
Os latinos tinham muito pouco para dividir, mas dividiam o que tinham. Também não hesitavam em beber um pouco de leite de um latão esperando transporte na beira da estrada ou de passar por debaixo de uma cerca para pegar umas laranjas aqui e umas bananas ali.
Os mochileiros brasileiros viajavam só, eram namoradores, e escolhiam as suas namoradas fortuitamente em diversas localidades. Eram de boa paz com o mundo e tudo era beleza.
Os argentinos eram mais temperamentais, os chilenos mais sonhadores e poetas, e ambos levavam com mais freqüência as suas namoradas que eram afinal, que mandava neles.

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Os verdadeiros hippies eram um grupo heterogêneo, que geralmente vivia com o mínimo indispensável à manutenção da vida, sempre descobrindo onde encontrar drogas, quem as vendiam e não se preocupavam muito com o resto da vida.
Não tinham mochilas e andavam com bolsas, cestas e uns até com um saco de plástico com seus pertences. Seus trajes eram extravagantes e sujos, suas aparências não cuidadas e viviam em seu mundo, com a sua lógica e seus costumes tribais.
Eram fedorentos e suas meninas também, e desprezavam os mochileiros por serem adeptos da água e sabão, caretas em relação a eles e mais ou menos obedeciam à lei.
Geralmente os hippies tinham problema nas fronteiras de países por falta de documento,. ou por entrarem nos países sem vistos no passaporte, enfim Bino achou-os interessante e observou que individualmente, a maioria deles, era gente boa, mas como grupo, inconfiáveis e criadores - ou pára-raios - de problemas.
Para Bino que tinha um destino final quase que um Dharma a ser cumprido, ele evitava os hippies. Bino não queria problemas: ele tinha prometido sobreviver para dar testemunho do que viu, ele tinha que se cuidar muito e chegar ao seu destino.
Na estrada havia também hábitos idênticos a quase todos: não se carregava dinheiro a vista, armas ou nada de comprometedor nas mochilas – que constantemente eram revistadas, por qualquer motivo fortuito que julgassem as autoridades.
Já Bino era um completo “mochileiro” – ainda que meio “híbrido”: Primeiro, ele conhecia lugares e visitava pontos interessantes em sua jornada, mas ele nunca perdeu a perspectiva de que ele era também um “fugitivo”. A sua “logística” em cruzar fronteiras e lidar com autoridades não dava margens a erro.
Mas como um mochileiro qualquer, ele andava com uma mochila tipo americana, verde e bem usada que ganhara da Gandira, cheia de decalques de lugares que ele ainda não conhecia, usava calças jeans, uma camiseta de algodão, tênis nacional, e uma jaqueta americana acolchoada e de zíper, que ganhara do pastor Tommy; tinha seu passaporte verdadeiro, pensava ter uns cem dólares escondidos na jaqueta, junto com seus documentos – inclusive uma carteira de identidade falsa da UPF, com o nome de Arthur Lange.