Ele chegou a rodoviária, sentou-se num banco ao lado do guichê que vendia passagens para Tulcan, na fronteira do Equador com o sul da Colômbia. Até a noite Bino tinha que deixar o Equador, pois seu passe de três dias expiraria.
No mapa ele calculou que indo pela Rodovia 25, que era simplesmente a continuação da Carretera Pan Americana, a distância seria de 350 quilômetros, e calculou, que pelas freqüentes paradas do ônibus e pelo estado das estradas no país, que, no mínimo, a viagem seria de oito horas.
Bino queria sair no primeiro ônibus as seis da manhã: Apesar do Equador não ter fronteiras com o Brasil e ele temia que houvesse troca de Telex entre as autoridades militares equatorianas e o DOPS do Brasil e ele pensou que na Colômbia, sob um governo de civis, ele estaria mais protegido.
Às cinco e meia Bino comprou seu ticket para Tulcan e estranhou que o preço fosse tão baixo, até que ele visse o “ônibus” chegar.
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O ônibus era uma adaptação de carroçaria de madeira, incluindo os assentos montados numa estrutura de um caminhão americano International. Era um pouco melhor do que o nosso pau-de-arara brasileiro, só pelo teto de madeira e umas lonas com plásticos transparentes que se rolavam pelas laterais protegendo os passageiros em caso de chuva.
As malas iam por uma escada atrás do “ônibus” para cima do teto de madeira, colocadas em um berço de ferro e cobertas por lona e amarradas por cordas e mais: em cima com as malas um policial solicitou ao motorista que levasse dois pobres coitados, provavelmente indigentes e estes não podiam se proteger debaixo da lona em caso de chuva. Pelo menos estes pobres coitados ficaram com as melhores vistas dos Andes.
Dentro do baú de madeira era um carnaval caótico. Jovens mestiços tocavam violão e cantavam “cuencas” com ajuda de uma “charanga” improvisada, garrafas de pisco eram passadas entre alguns passageiros, antes mesmo de sair “a coisa”, senhoras nativas já passavam as suas tortilhas e tamales entre si e muitas delas já estavam de peito para fora acalmando seus rebentos.
Havia passageiros levando iguanas precariamente amarradas por embiras, e este animal era um prato entre os nativos, ainda mais apreciados do que galinha.
Na metade da viagem uma desses iguanas se desvencilhou de sua amarração e saiu correndo por baixo dos pranchões de assento e foi um Deus-nos-acuda, com um pobre índio velho, meio embriagado, se metendo debaixo dos assentos e os mais jovens o sacaneando espantando o lagarto-almoço, enfim o ônibus teve que parar, a iguana foi caçada, presa e amarrada, e depois seguiu-se viagem.
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Como a cabine estava cheia de passageiros, Bino subiu numa carroceria de quase três metros de altura, carregada de cenouras e se acomodou no topo do mundo, como se fosse o Monarca das Cenouras, e seguiu viagem por mais uns 135 quilômetros no topo dos Andes em estrada perigosa, estreita e de barro até a cidade de Pasto.
De cima da carga de cenoura Bino pode apreciar as montanhas e o vale a mais de mil metros abaixo, rolando-se até a lateral da balouçante carroceria ele ficou a olhar as rodas do caminhão, tão perto do abismo, negociando a lama vermelha que espirrava em todas as direções.
A estrada não tinha cercas de proteção e muito menos acostamento. A fome apertou e Bino começou a comer cenouras, O frio das montanhas era intenso e havia uma garoa muito úmida, Bino retirou a sua jaqueta azul de náilon da mochila, desenrolou seu saco de dormir, entrou nele e se aninhou debaixo de uma lona esfarrapada que cobria só parte das cenouras.
Ainda era frio, e de novo ele pegou a mochila, tirou o seu poncho e a sua garrafa de pisco e deu duas goladas grandes e a guardou. Depois enrolou o poncho e o transformou em travesseiro. A carroceria do caminhão continuava a balançar e ele se preocupava com a estrada, mas entregou seu destino aos deuses e dormiu profundamente, sonhando com praias ensolaradas e de por de sois amarelo-cenoura.
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Acordou em Pasto muito cedo de manhã, o e motorista do caminhão gritou para cima da carga:
– Eh, Brasilenho, te invito a un desayuno Pastusco!
E novamente a amabilidade Andina se fez presente: Foram a um modesto banheiro e em seguida sentaram a mesa de uma construção antiga de alvenaria que era um armazém ao lado de um posto de gasolina.
O motorista pediu um café da manhã com Huevos Rancheros, que era feito refogando-se tomates picados, com pimentão e bastante cebola, cheiro verde e depois se colocava um pouco d’água e três ovos, fechava-se a tampa da frigideira, cozinhava-se os ovos no vapor por pouco tempo, colocava-se mais salsinha e coentro sobre eles e logo em seguida os serviam na frigideirinha, com pão, manteiga, queijo e um café forte, delicioso e aromático, numa caneca esmaltada.
Estes Ovos Rancheiros era o café da manhã reforçado dos campesinos locais.
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Bino ainda estava na mesa com o motorista amigo e na mesa do lado sentou-se um motorista dirigindo um caminhão tanque e após conversa entre os dois motoristas Bino conseguiu uma carona de boleia até Cali.
O caminhão saiu a tarde e ao cair da noite estava no Vale do Rio Cauca. A estrada foi se apertando: para o oeste a parte ocidental do maciço andino que faz fronteira com a floresta Amazônica e para o leste por um outro braço do maciço dos Andes e, a visão gigantesca desta bifurcação dos Andes mais a estrada enluarada bordejando o rio Cauca era simplesmente linda, e Bino se sentiu pequeno naquele lugar.
As três da manha o caminhão tanque subia gemendo e engatado em marcha forte em direção ao Maciço Leste, e subiu por muitos quilômetros de asfalto mal cuidado, até que de manhã eles chegaram a uma linda cidade chamada Cali, localizada num platô a dois mil e seiscentos metros de altura.
Cali é uma cidade pujante, limpa, européia, com amplas avenidas, edifícios modernos, uma universidade de primeira linha e um campus grande e bem bonito.
Bino conseguiu hospedaria no campus, e lá fez amigos entre os estudantes que lhes deram mais endereços de outros amigos que estavam no campus da Universidade de Bogotá, na capital federal, e também no campus da Universidade de Medellín.
Lá pela primeira vez ele conheceu a arte do mundialmente renomado pintor Botero e também conheceu mais a fundo alguns livros, ainda não publicados no Brasil, de um grande escritor colombiano, da cidade litorânea de Cartagena, o Gabriel Garcia Marques.
Bino leu ávida e rapidamente um de seus livros, escrito de modo realístico e simultaneamente fantasmagórico, chamado Cien Años de Soledad, e ao terminar de ler Bino sabia que também na literatura, Colômbia possua um Campeão Peso Pesado.
Na Universidade de Colômbia em Cali, com os estudantes de Arquitetura, Bino adquiriu um gosto por uma aguardente muito boa, chamada Cristal, forte como uma boa caninha brasileira, mas com um toque de anis que a “arredondava” ainda mais ao descer esôfago adentro. Também com os estudantes bebeu o famoso Tinto, um café expresso, feito dos melhores grãos dos cafés colombianos que se tomava imediatamente após ser passado. Além do gosto, o aroma do café colombiano era único, até para Bino, criado em zona cafeeira.
Muitos dos estudantes de Cali, após beberem o tinto, sempre fumavam um cigarro barato, sem filtro, de tabaco negro, chamado Piel Roja, ou Pele Vermelha. Um dia depois de umas doses de Aguardiente Cristal, Bino quis fazer graça fumando um dos Peles Vermelhas oferecidos por uma estudante de Literatura. Bino passou mal e foi forçado a perder um belo almoço.
De volta à turma, ainda meio mareado e esverdeado, ele foi motivo de chacota amiga por não manusear bem o mata-rato e principalmente por suas botas pastuscas, pois os intelectuais de Cali tinham, enganosamente, a concepção de que os Pastuscos eram brutos e burros – e, paradoxalmente, eram admirados por sua simplicidade, honestidade e ética de trabalho.
Pela Colômbia afora Bino sempre notou esta relação amor-ódio entre os citadinos e os camponeses das montanhas, genericamente chamados de Pastuscos.
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Depois de alguns meses na estrada, o mochileiro começa a adquirir um sexto sentido sobre uma determinada cidade, com um companheiro de estrada ou até mesmo com a carona que lhe está sendo oferecida. Bino não podia explicar isto em palavras, mas era um sentimento que não vinha do intelecto, mas talvez do hipotálamo, algo intuitivo ou visto pelo terceiro olho, como diziam os amigos Krishnas.
Bino sentiu que havia alguma coisa muito errada com aquela linda cidade florida e de eterna primavera. Em condições normais, sustentada pela economia local Medellín não poderia, como New York e Paris ter tanto vestidos de grife famosas pelas suas ruas, tantas jóias caríssimas, e uma estranha entourage de tiras de guarda-costas vestidos de ternos custosos e em carros importados dos EUA e da Europa. Aquele padrão de vida, aqueles bares servindo algumas vezes champanhe de vinte mil dólares aquilo não era produto da economia formal da área.
Às noites na cidade eram longas, festivas, comemoradas em restaurantes finíssimos sempre cheios e o mesmo com as discotecas; corria muito dinheiro vivo, e até havia muitas vadias de luxo, também importadas dos EUA, Europa e ate do Brasil. Havia muita cocaína rolando. Não faltavam carros de luxo, limusines, muitos “turistas” com guarda-costas, muitos gorilas trabalhando de segurança... Algo em Medelín não andava certo.
Era o comércio de drogas. De cara no campus, ele foi informado do pó luminoso que cobria a cidade, mas parecia que a maioria dos estudantes era complacente com a situação: bem, os gringos buscam o pó, aqui se tem muito, é só uma mera questão de oferta e procura, era o raciocínio quase universal.
Outros iam mais além dizendo que o problema era na demanda, sem ela não haveria produção, daí as drogas na Colômbia eram um problema sim, mas um problema causado por norte-americanos.
Eles pareciam estar cegos que o problema já tinha se tornado também dos supridores, dos colombianos, com bandos de crianças viciadas em Bazuco, já não mais vivendo com suas famílias e que dormiam promiscuamente nos bueiros de Santa Fé de Bogotá; com tiroteios nas favelas; com assassinatos dia e noite; bombas explodindo em jornais da capital, intimidando a imprensa e mais - com a dissolução familiar, prostituição infantil, e violência urbana em geral.
Um dos estudantes que Bino encontrou no refeitório, que defendia o tráfico, estava de olhos vermelhos, falava rápido e desconexo, mãos trêmulas, e, por trás de todas as suas argumentações sócio- econômicas postas de maneira lúcida e elegante, com lógica amparada no princípio de Colbert, a lei de oferta e procura, por trás de tudo aquilo, era puro sofisma: Bino falava com um viciado que nem mais atinava para a realidade.
Depois desta “palestra” Bino decidiu que viu o bastante da bela e sedutora Medellín, dos anos setenta e que já era tempo de ganhar a Carretera Pan Americana para o norte.
Estudou seu mapa e decidiu que sairia cedo no outro dia e iria até Chigorodo e de lá pegaria outra carona até Rio Sucio, tentaria entrar no Panamá pelo Parque Nacional Darién.
Uma vez no Panamá, Bino tentaria de um modo qualquer a ser decidido lá, se re-conectar com a Pan Americana Norte na cidade de Yavisa, no Sul do Panamá.
No Café Universal se reuniam bastantes mochileiros e alguns hippies e Bino foi lá a tarde para ver se conseguia alguma informação de primeira mão como negociar a problemática fronteira, com pouquíssimas estradas, onde a Carretera Pan Americana parecia sumir.
A sua primeira decepção foi com as notícias dadas a ele por um casal de mochileiros alemães, que se julgavam com muita sorte de terem sobrevivido àquela fronteira e voltado para Medelín, depois de muitos dias perdidos na floresta e fugindo de guerrilheiros.
Eles afirmaram que o tal do Passo do Darién era simplesmente impassável. Era uma área de quase cem quilômetros de terreno difícil, montanhas, rios caudalosos, cheio de bandidos, forças colombianas para-militares e guerrilheiros das FARC, ou Forças Armadas Revolucionárias Colombianas.
“Por lá você não passa”, disse o alemão bem direto e reto. Bino se sentiu frustrado e impotente com estes cem quilômetros intransitáveis adiante dele, numa rodovia que saia praticamente do pólo sul, ou seja, da Patagônia, cortando todas as Américas até os gelos do Alaska e só com a exceção de menos de cem quilômetros entre Colômbia e Panamá incompletos.
Porque a Pan Americana desaparece nessa fronteira? E ninguém tinha uma resposta definitiva.