domingo, 11 de dezembro de 2011

UMA ALIANÇA INFELIZ DA DITADURA

Ele chegou a rodoviária, sentou-se num banco ao lado do guichê que vendia passagens para Tulcan, na fronteira do Equador com o sul da Colômbia.  Até a noite Bino tinha que deixar o Equador, pois seu passe de três dias expiraria.
No mapa ele calculou que indo pela Rodovia 25, que era simplesmente a continuação da Carretera Pan Americana, a distância seria de 350 quilômetros, e calculou, que pelas freqüentes paradas do ônibus e pelo estado das estradas no país, que, no mínimo, a viagem seria de oito horas.
Bino queria sair no primeiro ônibus as seis da manhã: Apesar do Equador não ter fronteiras com o Brasil e ele temia que houvesse troca de Telex entre as autoridades militares equatorianas e o DOPS do Brasil e ele pensou que na Colômbia, sob um governo de civis, ele estaria mais protegido.
Às cinco e meia Bino comprou seu ticket para Tulcan e estranhou que o preço fosse tão baixo, até que ele visse o “ônibus” chegar.
                                                  
                                                              
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O ônibus era uma adaptação de carroçaria de madeira, incluindo os assentos montados numa estrutura de um caminhão americano International. Era um pouco melhor do que o nosso pau-de-arara brasileiro, só pelo teto de madeira e umas lonas com plásticos transparentes que se rolavam pelas laterais protegendo os passageiros em caso de chuva.
As malas iam por uma escada atrás do “ônibus” para cima do teto de madeira, colocadas em um berço de ferro e cobertas por lona e amarradas por cordas e mais: em cima com as malas um policial solicitou ao motorista que levasse dois pobres coitados, provavelmente indigentes e estes não podiam se proteger debaixo da lona em caso de chuva. Pelo menos estes pobres coitados ficaram com as melhores vistas dos Andes.
Dentro do baú de madeira era um carnaval caótico. Jovens mestiços tocavam violão e cantavam “cuencas” com ajuda de uma “charanga” improvisada, garrafas de pisco eram passadas entre alguns passageiros, antes mesmo de sair “a coisa”, senhoras nativas já passavam as suas tortilhas e tamales entre si e muitas delas já estavam de peito para fora acalmando seus rebentos.
Havia passageiros levando iguanas precariamente amarradas por embiras, e este animal era um prato entre os nativos, ainda mais apreciados do que galinha.
Na metade da viagem uma desses iguanas se desvencilhou de sua amarração e saiu correndo por baixo dos pranchões de assento e foi um Deus-nos-acuda, com um pobre índio velho, meio embriagado, se metendo debaixo dos assentos e os mais jovens o sacaneando espantando o lagarto-almoço, enfim o ônibus teve que parar, a iguana foi caçada, presa e amarrada, e depois seguiu-se viagem.
                                                  
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Como a cabine estava cheia de passageiros, Bino subiu numa carroceria de quase três metros de altura, carregada de cenouras e se acomodou no topo do mundo, como se fosse o Monarca das Cenouras, e seguiu viagem por mais uns 135 quilômetros no topo dos Andes em estrada perigosa, estreita e de barro até a cidade de Pasto.
De cima da carga de cenoura Bino pode apreciar as montanhas e o vale a mais de mil metros abaixo, rolando-se até a lateral da balouçante carroceria ele ficou a olhar as rodas do caminhão, tão perto do abismo, negociando a lama vermelha que  espirrava em todas as direções.
 A estrada não tinha cercas de proteção  e muito menos acostamento. A fome apertou e Bino começou a comer cenouras, O frio das montanhas era intenso e havia uma garoa muito úmida, Bino retirou a sua jaqueta azul de náilon da mochila, desenrolou seu saco de dormir, entrou nele e se aninhou debaixo de uma lona esfarrapada que cobria só parte das cenouras.
Ainda era frio, e de novo ele pegou a mochila, tirou o seu poncho e a sua garrafa de pisco e deu duas goladas grandes e a guardou.  Depois enrolou o poncho e o transformou em travesseiro. A carroceria do caminhão continuava a balançar e ele se preocupava com a estrada, mas entregou seu destino aos deuses e dormiu profundamente, sonhando com praias ensolaradas e de por de sois amarelo-cenoura.
                                                
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Acordou em Pasto muito cedo de manhã, o e motorista do caminhão gritou para cima da carga:
– Eh, Brasilenho, te invito a un desayuno Pastusco!
E novamente a amabilidade Andina se fez presente: Foram a um modesto banheiro e em seguida sentaram a mesa de uma construção antiga de alvenaria que era um armazém ao lado de um posto de gasolina.
O motorista pediu um café da manhã com Huevos Rancheros, que era feito refogando-se tomates picados, com pimentão e bastante cebola, cheiro verde e depois se colocava um pouco d’água e três ovos, fechava-se a tampa da frigideira, cozinhava-se os ovos no vapor por pouco tempo, colocava-se mais salsinha e coentro sobre eles e logo em seguida os serviam na frigideirinha, com pão, manteiga, queijo e um café forte, delicioso e aromático, numa caneca esmaltada.
Estes Ovos Rancheiros era o café da manhã reforçado dos campesinos locais.
                                                         
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Bino ainda estava na mesa com o motorista amigo e na mesa do lado sentou-se um motorista dirigindo um caminhão tanque e após conversa entre os dois motoristas Bino conseguiu uma carona de boleia até Cali.
O caminhão saiu a tarde e ao cair da noite estava no Vale do Rio Cauca. A estrada foi se apertando:  para o oeste a parte ocidental do maciço andino que faz fronteira com a floresta Amazônica e para o leste por um outro braço do maciço dos Andes e, a visão gigantesca desta bifurcação dos Andes mais a estrada enluarada  bordejando o rio Cauca era simplesmente linda, e Bino se sentiu pequeno naquele lugar.
As três da manha o caminhão tanque subia gemendo e engatado em marcha forte em direção ao Maciço Leste, e subiu por muitos quilômetros de asfalto mal cuidado, até que de manhã eles chegaram a uma linda cidade chamada Cali, localizada num platô a dois mil e seiscentos metros de altura.
Cali é uma cidade pujante, limpa, européia, com amplas avenidas, edifícios modernos, uma universidade de primeira linha e um campus grande e bem bonito.
Bino conseguiu hospedaria no campus, e lá fez amigos entre os estudantes que lhes deram mais endereços de outros amigos que estavam no campus da Universidade de Bogotá, na capital federal, e também no campus da Universidade de Medellín.
Lá pela primeira vez ele conheceu a arte do mundialmente  renomado pintor Botero e também conheceu mais a fundo alguns livros, ainda não publicados no Brasil,  de um grande escritor colombiano, da cidade litorânea  de  Cartagena, o Gabriel Garcia Marques.
Bino leu ávida e rapidamente um de seus livros, escrito de modo realístico e simultaneamente fantasmagórico, chamado Cien Años de Soledad, e ao terminar de ler Bino sabia que também na literatura, Colômbia possua um Campeão Peso Pesado.
Na Universidade de Colômbia em Cali, com os estudantes de Arquitetura, Bino adquiriu um gosto por uma aguardente muito boa, chamada Cristal, forte como uma boa caninha brasileira, mas com um toque de anis que a “arredondava” ainda mais ao descer esôfago adentro. Também com os estudantes bebeu o famoso Tinto, um café expresso, feito dos melhores grãos dos cafés colombianos que se tomava imediatamente após ser passado. Além do gosto, o aroma do café colombiano era único, até para Bino, criado em zona cafeeira.
Muitos dos estudantes de Cali, após beberem o tinto, sempre fumavam um cigarro barato, sem filtro, de tabaco negro, chamado Piel Roja, ou Pele Vermelha. Um dia depois de umas doses de Aguardiente Cristal, Bino quis fazer graça fumando um dos Peles Vermelhas oferecidos por uma estudante de Literatura. Bino passou mal e foi forçado a perder um belo almoço.
De volta à turma, ainda meio mareado e esverdeado, ele foi motivo de chacota amiga por não manusear bem o mata-rato e principalmente por suas botas pastuscas, pois os intelectuais de Cali tinham, enganosamente, a concepção de que os Pastuscos eram brutos e burros – e, paradoxalmente, eram admirados por sua simplicidade, honestidade e ética de trabalho.
Pela Colômbia afora Bino sempre notou esta relação amor-ódio entre os citadinos e os camponeses das montanhas, genericamente chamados de Pastuscos.

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Depois de alguns meses na estrada, o mochileiro começa a adquirir um sexto sentido sobre uma determinada cidade, com um companheiro de estrada ou até mesmo com a carona que lhe está sendo oferecida. Bino não podia explicar isto em palavras, mas era um sentimento que não vinha do intelecto, mas talvez do hipotálamo, algo intuitivo ou visto pelo terceiro olho, como diziam os amigos Krishnas.
Bino sentiu que havia alguma coisa muito errada com aquela linda cidade florida e de eterna primavera. Em condições normais, sustentada pela economia local Medellín não poderia, como New York e Paris ter tanto vestidos de grife famosas pelas suas ruas, tantas jóias caríssimas, e uma estranha entourage de tiras de guarda-costas vestidos de ternos custosos e em carros importados dos EUA e da Europa. Aquele padrão de vida, aqueles bares servindo algumas vezes champanhe de vinte mil dólares aquilo não era produto da economia formal da área.
Às noites na cidade eram longas, festivas, comemoradas em restaurantes finíssimos sempre cheios e o mesmo com as discotecas; corria muito dinheiro vivo, e até havia muitas vadias de luxo, também importadas dos EUA, Europa e ate do Brasil. Havia muita cocaína rolando. Não faltavam carros de luxo, limusines, muitos “turistas” com guarda-costas, muitos gorilas trabalhando de segurança...  Algo em Medelín não andava certo.
Era o comércio de drogas. De cara no campus, ele foi informado do pó luminoso que cobria a cidade, mas parecia que a maioria dos estudantes era complacente com a situação: bem, os gringos buscam o pó, aqui se tem muito, é só uma mera questão de oferta e procura, era o raciocínio quase universal.
Outros iam mais além dizendo que o problema era na demanda, sem ela não haveria produção, daí as drogas na Colômbia eram um problema sim, mas um problema causado por norte-americanos.
Eles pareciam estar cegos que o problema  já tinha se tornado  também dos supridores, dos colombianos, com bandos de crianças viciadas em Bazuco, já não mais vivendo com suas famílias e que dormiam promiscuamente nos bueiros de Santa Fé de Bogotá; com tiroteios nas favelas; com assassinatos dia e noite; bombas explodindo em jornais da capital, intimidando a imprensa e mais - com a dissolução familiar, prostituição infantil, e violência urbana em geral.
Um dos estudantes que Bino encontrou no refeitório, que defendia o tráfico, estava de olhos vermelhos, falava rápido e desconexo, mãos trêmulas, e, por trás de todas as suas argumentações sócio- econômicas postas de maneira lúcida e elegante, com lógica amparada no princípio de Colbert, a lei de oferta e procura, por trás de tudo aquilo,  era puro sofisma: Bino falava com um viciado que nem mais atinava para a realidade.
Depois desta “palestra” Bino decidiu que viu o bastante da bela e sedutora Medellín, dos anos setenta e que já era tempo de ganhar a Carretera Pan Americana para o norte.
Estudou seu mapa e decidiu que sairia cedo no outro dia e iria até Chigorodo e de lá pegaria outra carona até Rio Sucio, tentaria entrar no Panamá pelo Parque Nacional Darién.
Uma vez no Panamá, Bino tentaria de um modo qualquer a ser decidido lá, se re-conectar com a Pan Americana Norte na cidade de Yavisa, no Sul do Panamá.
No Café Universal se reuniam bastantes mochileiros e alguns hippies e Bino foi lá a tarde para ver se conseguia alguma informação de primeira mão como negociar a problemática fronteira, com pouquíssimas estradas, onde a Carretera Pan Americana parecia sumir.
A sua primeira decepção foi com as notícias dadas a ele por um casal de mochileiros alemães, que se julgavam com muita sorte de terem sobrevivido àquela fronteira e voltado para Medelín, depois de muitos dias perdidos na floresta e fugindo de guerrilheiros.
Eles afirmaram que o tal do Passo do Darién era simplesmente impassável. Era uma área de quase cem quilômetros de terreno difícil, montanhas, rios caudalosos, cheio de bandidos, forças colombianas para-militares e guerrilheiros das FARC, ou Forças Armadas Revolucionárias Colombianas.
“Por lá você não passa”, disse o alemão bem direto e reto. Bino se sentiu frustrado e impotente com estes cem quilômetros intransitáveis adiante dele, numa rodovia que saia praticamente do pólo sul, ou seja, da Patagônia, cortando todas as Américas até os gelos do Alaska e só com a exceção de menos de cem quilômetros entre Colômbia e Panamá incompletos.
Porque a Pan Americana desaparece nessa fronteira? E ninguém tinha uma resposta definitiva.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Bino - o mochileiro

Bino, no começo, ressentia o termo mochileiro, quando aplicado a ele. Com o passar dos meses, ele notou que os mochileiros eram uma sub-cultura que de fato existia nas estradas e que de uma forma, rotulado nela, o ajudava a disfarçar a sua condição de fugitivo. Daí para diante ele abraçou o termo mochileiro sem ressentimentos.
Bino passou a estudar e definir os grupos de mochileiros que ele encontrava. Existiam vários tipos deles, com distintas características.
Por exemplo, seus equipamentos, suas mochilas e conteúdos eram específicos e mais do que isto, eles tinham um implícito “código de estrada” mais ou menos universal no que diz respeito ao seu bem estar e sobrevivência.
Se um mochileiro adoecesse na estrada todos ajudavam. Ou com remédio, ou procurando hospitais, apelando para conhecidos e no último caso até trazendo-o à sua família.
Eles sempre trocavam entre si informações sobre pousadas, albergues e escolas e também locais amigáveis e hostis a eles. Esse acervo de informações era repassado ao se cruzarem nas estradas lhes permitindo a ter um plano de ação formado muitos quilômetros antes de chegarem a seu destino.
Também se informavam e repassavam o conhecimento sobre fronteiras entre países ou províncias que os hostilizavam ou facilitavam; para os que usavam drogas, havia sempre informações onde ela poderia ser obtida, qual local era perigoso obtê-las ou a penalidade em usá-las em determinadas cidades ou locais.
Geralmente nos anos 1969 a 1970 a droga mais usada era a maconha e o pessoal que “fazia” drogas pesadas usavam o LSD. Os mochileiros usuários de drogas estavam em outra categoria, mais para o lado dos hippies do que dos mochileiros propriamente ditos, mas apesar da distinção, eles também se ajudavam mutuamente, apesar de andar pelas estradas em diferentes bandos.

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Entre os mochileiros era pecado mortal negar cigarros ou deixar de dividir a comida. A fama de um mau mochileiro, ou grupo destes, geralmente andava dias a frente deles – e a comunidade se afastava deles como se fossem infetados de peste bubônica.
Para um mochileiro sobreviver nas estradas já era bem difícil - e não havia necessidade de aumentar mais os riscos com má companhia e “mesquinharia” era considerada um crime muito mais além do que o uso de drogas.
Bino poucas vezes viu um bêbado no meio deles. Mas, geralmente, eles davam o chamado tapa-no-macaco ou tapinha - que era fumar um baseado.
Na América Latina não se levava drogas, pois as penalidades por conta delas eram bem altas. Quase todos os mochileiros sabiam de um ou mais conhecido que pegou de dois a dez anos de cana, em prisões desumanas por causa de drogas, então a maioria dos mochileiros andava de cara limpa.
Havia também todos os tipos e nuances de pessoas pululando as estradas com mochilas nas costas: Alguns estavam lá por turismo barato, outros em férias, outros procurando um sentido na vida, alguns fugindo de guerras, tentando entrar ilegalmente num país e só Deus sabe o motivo de cada um; mas este tema de “por que um foi para a estrada” era privado e era tabu bisbilhotar sobre o assunto.
Também Bino aprendeu a descobrir a história de viagens do mochileiro pela sua mochila, suvenires, roupas ou acessórios.

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Os americanos usavam mochilas grandes, de náilon reforçado, acolchoadas, confortável nas costas, e com armação de alumínio geralmente em cores bem chamativas e refletores de luz por medida de segurança na estrada. Elas tinham vários compartimentos e nelas era fácil de organizar as coisas. As mochilas dos americanos eram como a da amiga Gandira: cheias de souvenires e decalques dos locais por onde passaram eles.
Era um tipo de exposições das “medalhas de honra ao mérito”, de locais conhecidos, de “moral de estrada”. Os americanos também sempre tinham algo bom de comer em suas mochilas como carne e sopas desidratadas, chocolate, sabão, sabonete e xampu sem falar em pente, escova e pasta de dentes. Alguns até levavam uma mini barraca e um fogãozinho a gás, butano, canivete suíço e kit de primeiros socorros.
Carregavam também sempre um livro. Andavam de passaporte e bem documentados e traziam também com eles até cheques de viagem.        
Diferentes do resto dos mochileiros, os americanos e europeus eram respeitados como cidadãos em suas respectivas embaixadas, em caso de necessidade se faziam presente e lhes davam assistência. Este tratamento de suas embaixadas fazia com que eles fossem menos escorraçados pelas autoridades locais e algumas autoridades tinham até deferência por eles, os elevando a categoria de “turistas”.
Também eles sempre tinham informações de banhos públicos e onde se vendia isto ou aquilo. Os americanos tinham por uniforme, calças Lewis de jeans, óculos escuros, boné, camiseta e tênis confortáveis para a caminhada. Geralmente todos eram brancos e Bino nunca viu um negro, por estranha razão, entre eles.
Já os mochileiros europeus e canadenses eram simplesmente uma versão mais modesta dos americanos. Suas mochilas eram também de ótima qualidade, porém voltada mais para a durabilidade e essenciais - com cores menos berrantes, como verde, azul e marrom.
Eles também tinham sempre algo de comer em suas mochilas, mas era algo local, comida adquirida na estrada, Por exemplo, pão e queijo; tinham também café instantâneo, cigarros, lanternas e sempre com uma bandeirinha discreta de seus países colada a mochila. Era comum ver os europeus com uma dúzia ou duas de bananas penduradas em suas mochilas. Eram parcimoniosos com os decalques sobre a mochila e sempre tinham um vinho marca diabo com eles para desinfetar seus estômagos da comida local.
Diferente dos americanos eles quase sempre falavam vários idiomas, andavam com dicionários e sempre tentavam falar e aprender com os nativos. Os europeus não tinham tanta mania de banho quanto os latinos e americanos, tinha mais odor corporal e suas mulheres muitas vezes não barbeavam os sovacos. Usavam mais botas de trilha ou de escalada de montanhas, dificilmente se via um deles de tênis; eles também eram bem seguros com o dinheiro.
Já os argentinos, chilenos, uruguaios e latino-americanos em geral, eram mais pobres. Suas mochilas eram menores, de lona, mais modestas e algumas foram até acampadas das forças armadas de seus países. Eram bolsas quadrangulares ou triangulares com alguns bolsos e correias de couro e não tinham armação de metal, ou divisões.
O carregamento destas mochilas exigia certa logística nas camadas dos itens nela contidos. Os itens de maior e mais uso, iam sempre à parte superior, roupa lavada no meio e as sujas em baixo, quando possível enrolada em sacos de plásticos e quando não, iam perfumando as roupas limpas com cheiro de roupa usada.
As mochilas dos latinos geralmente eram pequenas, para os mochileiros de curta distância, como por exemplo, de Chile a Equador, e geralmente tinha a capacidade de 10 quilos de carga; as maiores, como a do Bino, era dos mochileiros de longa distância, era capaz de carregar até uns 25 quilos e eram maiores. A mochila “latina” também era reforçada com cantoneiras, fundos e tiras de couro e nada tinham de sintéticos. O couro de proteção evitava o esgarçar da lona depois de muito uso.
Também os latinos usavam tênis mais modestos, tipo o “Conga”, também usavam jeans ou camisetas, mas sempre usavam ponchos ou abrigos de lã. Muitos carregavam violões em suas jornadas e vez por outra um argentino trazia junto à mochila o seu bandoneón que é um tipo de concertina – o que Bino considerava um “trambolho” desnecessário.
Também sempre havia um vinho barato com eles e dormiam onde podiam: Em postos de gasolina, albergues, igrejas e escolas. Usavam de torneira, rios e riachos para banhar-se – mas tinham que ter os seus banhos diários.
Os latinos tinham muito pouco para dividir, mas dividiam o que tinham. Também não hesitavam em beber um pouco de leite de um latão esperando transporte na beira da estrada ou de passar por debaixo de uma cerca para pegar umas laranjas aqui e umas bananas ali.
Os mochileiros brasileiros viajavam só, eram namoradores, e escolhiam as suas namoradas fortuitamente em diversas localidades. Eram de boa paz com o mundo e tudo era beleza.
Os argentinos eram mais temperamentais, os chilenos mais sonhadores e poetas, e ambos levavam com mais freqüência as suas namoradas que eram afinal, que mandava neles.

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Os verdadeiros hippies eram um grupo heterogêneo, que geralmente vivia com o mínimo indispensável à manutenção da vida, sempre descobrindo onde encontrar drogas, quem as vendiam e não se preocupavam muito com o resto da vida.
Não tinham mochilas e andavam com bolsas, cestas e uns até com um saco de plástico com seus pertences. Seus trajes eram extravagantes e sujos, suas aparências não cuidadas e viviam em seu mundo, com a sua lógica e seus costumes tribais.
Eram fedorentos e suas meninas também, e desprezavam os mochileiros por serem adeptos da água e sabão, caretas em relação a eles e mais ou menos obedeciam à lei.
Geralmente os hippies tinham problema nas fronteiras de países por falta de documento,. ou por entrarem nos países sem vistos no passaporte, enfim Bino achou-os interessante e observou que individualmente, a maioria deles, era gente boa, mas como grupo, inconfiáveis e criadores - ou pára-raios - de problemas.
Para Bino que tinha um destino final quase que um Dharma a ser cumprido, ele evitava os hippies. Bino não queria problemas: ele tinha prometido sobreviver para dar testemunho do que viu, ele tinha que se cuidar muito e chegar ao seu destino.
Na estrada havia também hábitos idênticos a quase todos: não se carregava dinheiro a vista, armas ou nada de comprometedor nas mochilas – que constantemente eram revistadas, por qualquer motivo fortuito que julgassem as autoridades.
Já Bino era um completo “mochileiro” – ainda que meio “híbrido”: Primeiro, ele conhecia lugares e visitava pontos interessantes em sua jornada, mas ele nunca perdeu a perspectiva de que ele era também um “fugitivo”. A sua “logística” em cruzar fronteiras e lidar com autoridades não dava margens a erro.
Mas como um mochileiro qualquer, ele andava com uma mochila tipo americana, verde e bem usada que ganhara da Gandira, cheia de decalques de lugares que ele ainda não conhecia, usava calças jeans, uma camiseta de algodão, tênis nacional, e uma jaqueta americana acolchoada e de zíper, que ganhara do pastor Tommy; tinha seu passaporte verdadeiro, pensava ter uns cem dólares escondidos na jaqueta, junto com seus documentos – inclusive uma carteira de identidade falsa da UPF, com o nome de Arthur Lange.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

E A VIAGEM CONTINUA...

Em Tumbes Bino comprou uma passagem na terceira classe no porão de uma Barca Quíchua, como ele havia planejado que saia de tarde e pela manhã chegava a Guayaquil.
            Bino já sabia que em Guayaquil  circulava o dólar americano, bem como a moeda nacional, o Balboa e ali ele aproveitaria para cambiar todos os Cruzeiros  Pesos Argentinos, Condores Chilenos e Soles de Oros Peruanos  por dólares para facilitar sua viagem.
            A três da tarde, ele entrou na velha barca e desceu duas secções abaixo do convés se alojou na terceira classe, que era o porão.  Lá ele conheceu um casal argentino, uma ruiva Mignone chamada Myrta cujo rosto lhe lembrava a Janis Joplin e o seu namorado, cabeludo, pouco mais alto do que ela, um tipo pálido, magro e com uma barriguinha de cerveja e ainda por cima apelidado de Mono.
            Eles pretendiam visitar as pirâmides Maia em Guatemala e a caminho conhecer Belize, um protetorado inglês que praticamente cortava o acesso da Guatemala ao mar do Caribe, e segundo o casal era um local mui hermoso e tinha lindas praias mornas e banhadas pelo Caribe.
            Enquanto eles falavam da beleza do pequeno protetorado inglês, Bino olhando espantado o número de nativo que empacotava o porão, com suas trouxas de roupa, suas caixas, galhinhas frutas, e todo o tipo de tranqueiras. A mente de Bino estava ocupada em achar um banheiro e uma saída de emergência, mas aparentemente não havia nenhum nem outro. O porão era quente, úmido e fedia,
            Bino conversou pouco com a Myrta e Mono, se limitando a dizer que ia visitar uns amigos em Guadalajara, encostou-se ao casco enferrujado da barca e achou melhor nem abrir a mochila ali para retirar o seu plástico para sentar no piso sujo.
            Aceitou um cigarro da Myrta e fumou mais para matar o cheio do local.
            Após três apitos longos Bino ouviu o barulho do motor, sentiu a trepidação do casco e minutos após ele já sentia o balanço do mar.
            A viagem seguia tranqüila, mas havia algumas coisas preocupava o Bino alem do banheiro e saída de emergência: Uma delas era que não havia nenhum colete salva vidas a vista. Outra, não havia extintores de incêndio. Também ele notou que a saída   para o convés superior, ou segunda classe, estava fechada com uma grade de ferro e trancada com corrente e cadeado.

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Quase ao lado de Bino havia uma escada íngreme de ferro que levava a segunda classe, mas havia a grade de ferro, fechada a corrente e cadeado, que não permitia o tráfico da terceira para a segunda classe.
            A cara do Mono estava sangrando, sua camisa em farrapos, e o moço insultado estava agora irritado com Bino, pois ele estava apartando a briga e evitando que o baixinho furioso esfaqueasse o Mono. Para complicar as coisas a Myrta estava também empurrando os nativos, em defesa do filho-amante e agora eles começavam a bolinar a guria.
            Bino gritou a ela para subir a escada e berrar por socorro, o que ela fez.  Enquanto isto Bino puxou o Mono escada a cima e disse para ele subir as escadas e juntar-se a Myrta também pedindo socorro.
            Em seguida Bino se viu acuado por dois caras com facas agora ameaçando, vagarosamente a dar um bote em cima dele.  Com a mochila em seu braço como escudo para se defender ele foi subindo de costas as escadas quando um deles furou a mochila.
            – Aí fechou o tempo; Bino se agarrou ao corrimão e se defendia com pontapés, com a bota pesada adquirida no Rio Grande do Sul, e Myrta gritava por socorro e freneticamente sacudia a grade de ferro e Mono tentando também dar pontapés - mais estava muito apalermado para qualquer tipo de ajuda.
            Ninguém apareceu para acabar com a confusão. Talvez fosse mesmo por estes tipos de brigas que a tripulação tinha colocado aquela grade e fechado-a a cadeado.  Então Bino gritou a Myrta, vamos gritar fogo:
            – E os três começaram a berrar: Fogo, fuego, fuego
            Quase de imediato um oficial vestido de branco apareceu com um extintor, Myrta gritou para ele que queriam esfaquear seu noivo e que ele já esta ensangüentado.
            O oficial abriu a arapuca, ela passou para a segunda classe arrastando a tralha do Mono. Bino continuava a dar pontapés para se defender das facas, quando um dos caras agarrou a sua perna. O oficial esguichou uma nuvem branca de pó anti fogo em Bino e na turba, e continuou esvaziando o extintor em direção a escada, enquanto Bino tossindo e de cara branca passava também para a segunda classe - e outro tripulante que tinha chegado para ajudar, fechava o alçapão.
            Por grande parte da viagem Bino ficou tentando se limpar do pó branco do extintor, e os três permaneceram o resto da viagem no “conforto” da segunda classe.
                                                        
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Guayaquil era uma cidade extremamente quente e úmida ao ponto de ser desconfortável.
            Bino trocou todas as moedas latino-americanas por dólares no Banco de Guayaquil, o que deu cento e trinta e dois dólares. Essas notas, Bino escondeu num saquinho de couro pendurado por uma tira ao seu pescoço.
            Na rua ele comprou um sanduíche chamado Chivito, ou cabritinho, que era um pão Francês com uma carne deliciosa, mas não identificada, que supostamente era de cabrito e um refresco de arroz, cremoso, branco como leite,  muito gostoso e típico de Guayaquil chamado resbaladera. Com o mesmo ambulante Bino adquiriu informações sobre as estradas para Quito e optou pela mais viável que era a Estrada 35, direto de Guayaquil para a Capital do Equador.
            À tarde Bino já caminhava pela estrada, agitando a bandeira brasileira pelo acostamento da estrada e um jipe da Municipalidade de Rio Bamba parou e com um engenheiro civil muito simpático, Bino foi até a metade do percurso, confortavelmente.
            Parecia a Bino que quanto mais ele se aproximava do México, maior poder o futebol e a bandeira do Brasil exerciam na materialização de caronas.
            Apesar de Bino não ter acompanhado de perto a campanha da Seleção Brasileira, na América Latina ele era como um tipo de “embaixador de estrada” da “Seleção Canarinho” e Bino capitalizou bastante nesta simpatia geral para obter suas caronas.
                                                  
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Em Quito Bino foi bem tratado pelos religiosos do albergue: Teve seu banho quente, almoçou fartamente com os padres, monges e seminaristas e a noite, jogaram xadrez e conversaram assuntos diversos que giraram em torno de perguntas curiosas sobre as andanças de Bino, o que ele achou do Equador e até sobre o Tri Campeonato do Brasil. Também eles demonstraram estar preocupados com as ditaduras na América e fizeram muitas perguntas sobre a situação política do Brasil.
No dia seguinte depois do café da  manhã, Bino pediu um pedaço de sabão para lavar algumas pecas de roupa e eles sugeriram que deixasse a roupa num canto do quarto, uma senhora da limpeza iria lavá-las - e se ele pudesse, desse um pequeno agrado a ela.
Bino agradeceu novamente a amabilidade daqueles bondosos sacerdotes, concordou com a sugestão. Aproveitou o resto da manhã e foi remendar algumas meias, dar uns pontos no corte em sua mochila, um recuerdo da Barca Quíchua.
Depois almoçou com os seminaristas e foi tirar uma sesta em seu quarto que no passado foi uma cela medieval, com grades e paredes de quase metro e meio de espessura, aposento espartano, cujos móveis se resumiam em uma cama, cadeira, mesa e um crucifixo.
Bino acordou bem disposto ao redor das três da tarde e decidiu dar um giro na cidade pois o jantar seria tarde, só as oito da noite.
Bino estava apreciando as plantas exóticas do parque central, quando alguém lhe deu uma tapinha em seu ombro: Era o Mono com sua noiva, a Myrta. Ambos pareciam exaustos como se não tivessem dormido por um minuto desde o “desencontro” em Guayaquil.
A Myrta usava óculos escuros, tapando um hematoma no olho esquerdo, que disse ter sido um acidente na estrada e eles estavam cheirando mal.
– Oi Bino, parecem que as estradas foram boas com você, disse a Myrta sorrindo.
– Oi Mono, oi Myrta, eu acho que não posso reclamar delas no Equador.
Aí Mono veio com uma ladainha de problemas que ele teve na estrada, como que “estes índios” nos trataram mal. E uma série de outras conversas, que “ninguém gostava de argentinos” e outras falações. Depois, disse que tentou ir para as praias na província de Esmeraldas, não conseguiu carona e acabou vindo contra vontade para Quito, e Myrta escutava tudo aquilo com enfado e quieta.

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Bino andou rápido seis quarteirões até a rodoviária e provavelmente os monges e seminaristas não lhe envolveram com a polícia porque não ouviu as sirenes para seu lado.
Ele chegou a rodoviária, sentou-se num banco ao lado do guichê que vendia passagens para Tulcan, na fronteira do Equador com o sul da Colômbia.  Até a noite Bino tinha que deixar o Equador, pois seu passe de três dias expiraria.
No mapa ele calculou que indo pela Rodovia 25, que era simplesmente a continuação da Carretera Pan Americana, a distância seria de 350 quilômetros, e calculou, que pelas freqüentes paradas do ônibus e pelo estado das estradas no país, que, no mínimo, a viagem seria de oito horas.
Bino queria sair no primeiro ônibus as seis da manhã: Apesar do Equador não ter fronteiras com o Brasil e ele temia que houvesse troca de Telex entre as autoridades militares equatorianas e o DOPS do Brasil e ele pensou que na Colômbia, sob um governo de civis, ele estaria mais protegido.
Às cinco e meia Bino comprou seu ticket para Tulcan e estranhou que o preço fosse tão baixo, até que ele visse o “ônibus” chegar.

                                                  

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

PELA CARRETERA PANAMERICANA

            Após caminhar e pedir carona por quase hora e meia na estrada,    pegou uma Chivita, como são conhecidos estes “ônibus artesanais” e psicodelicamente ornamentados nos quais ele já tinha andado no Equador e foi rumo norte, na Pan Americana, rumo a Talara.
            A alguns quilômetros desta cidade a Chivita parou com um problema no motor e Bino decidiu pedir carona até a cidade. Parou uma caminhonete Dodge, modelo bem anterior ao começo da segunda grande guerra, de um mercador de peixe. 
            A boléia estava cheia, mas o motorista apertou a todos e Bino se espremeu entre quatro pessoas. Todos fediam a peixe e estavam alegres. Eram pescadores em dia de sorte. Ofereceram-lhe uma garrafa de pisco em que todos bebiam. Bino deu uma golada sem fazer cara feia, eles gostaram do Brasilenho e se desculparam do aperto. A carroceria estava cheia de peixe e gelo, coberta por uma lona e pingava uma água avermelhada que também fedia a peixe. Mas Bino agradeceu a Deus pela carona - e aos trancos e barrancos chegou meio “alegre” a Talara, uma pequena vila pesqueira e, como os pescadores, fedendo a peixe.
            Ao chegar ao mercado, os locais começaram a gozar do Bino, uns dizendo que ele estava usando “El Perfume de Gardênia” e outros rindo e falando claro e em rima, diziam que ele estava “apestado de pescado.”
            Mas, novamente, aconteceu um incidente que foi uma constante em sua viagem pela América latina: um guri viu a bandeirinha do Brasil cozida na parte de trás de sua mochila e ao se darem contas que o Bino era um verdadeiro descendente dos Conquistadores da Copa, a sua sorte mudou, talvez crendo que um conquistador não devesse feder a peixe.
            Levaram-no até um banho público perto do mercado de peixe onde, por alguns centavos, se tomava um belo banho frio e com direito a um pedaço de sabão. Esses banhos públicos eram uns cubículos de madeira carcomida, comum a Ibero - América, com um cano jorrando água continuamente - e os mochileiros e alguns hippies mais asseados, freqüentemente os usavam.
            Bino lavou a sua roupa com sabão e um guri admirador da Raza de los Campeones o levou de calção e sandália de dedo até uma lavandeira perto dali, onde uma senhora lavou,secou e passou a ferro de carvão todas as suas roupas, também por quase nada.
            Depois Bino foi a um bolicho perto da praia e comeu uma bela sopa de cabeça de peixe e lá ele ouviu, em detalhes, pela primeira vez, a campanha da Seleção Brasileira com dois pescadores que se sentaram a sua mesa.
            Estes pescadores conseguiram-lhe um lugar numa caminhonete International muito velha com sua carroceria coberta de lona e com pranchas a guisa de bancos para os passageiros - sendo a maioria deles nativos e mochileiros; era uma versão compacta do “pau-de-arara” brasileiro que transportava nordestinos pobres para Rio e São Paulo e Brasília, no passado. Nesse pau-de-arara, Bino chegou a Tumbes.
            Como já era quase noite e Bino estava exausto, ele se encaminhou ate uma pequena praia de areia muito branca que estava literalmente entre manguezais.
            Apesar de Tumbes ser uma cidade verde e não desértica, à noite pareceu que a temperatura esfriou um pouco, talvez até porque Bino estava com fome.  O vento soprava na praia em rajadas fortes, de direção não determinada, como se o ar mais aquecido do oceano começasse a brigar as camadas frigidas vindas das cordilheiras distantes. Bino retirou o seu saco de dormir, preso por correias de couro no topo da mochila, tirou também uma folha de plástico de metro e meio por dois, desdobrou-a e a colocou sobre a areia, firmada por quatro pedras. Em seguida, entrou no saco de dormir colocado sobre o plástico, se ajeitou nele, como sempre, passou braço direito da alça da mochila para não ser furtado, usou-a como travesseiro, e ficou a contemplar a lua e o céu, ouvindo as ondas a se espocarem na praia e dormiu, Dormiu pesado e só acordou quando o sol já brilhava forte.

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            Durante este período as estradas estavam fervilhando de gente pedindo carona e as aduanas entre os países latino americanos estavam tão movimentadas que os agentes aduaneiros estavam aceitando qualquer tipo de identidade dos sul-americanos, na ausência de seus passaportes, para desafogar as fronteiras. Entre estes mochileiros Bino conheceu o mexicano Victor Dominguez, o qual veio a se tornar um amigo fiel do Bino.
            Apesar de o Peru estar sob um governo Militar semelhante ao do Brasil, esta confusão nas fronteiras, certamente ira ajudar Bino a sair do Peru, assim ele pensava.
            Antes do reboliço da vitória da Seleção Brasileira de Futebol Bino ouviu muitos casos de pessoas que na apresentação do passaporte, foram presas e recambiadas ao Brasil ou Argentina; isto não era paranóia: era fato.  A verdade era que nos tempos da ditadura uma coisa andava muito bem organizada entre os países ditatoriais: a repressão.
            Enquanto Bino andava em direção ao centro da cidade ele se encontrou com dois mochileiros canadenses, e como sempre eles sempre fazem, pararam, “trocaram figurinhas”, endereços de pousos e albergues, falaram sobre os locais e cidades mais amigáveis, sobre tratamento em aduanas, enfim aquela mesma  estória de planejar com antecedência a logística de sobrevivência para a próxima parada.
            Os canadenses também falaram que chegaram de Guayaquil em uma barca, saíram de Guayaquil à tarde, navegaram toda a noite e chegaram a Tumbes de manha. Reiteraram que a burocracia portuária era pequena, que de terceira classe a viagem  custava centavos e no porão dava ate para dormir.
            Ao se despedirem, Bino já tinha um plano de ação: Sairia do Peru por Tumbes numa “Barca Quíchua”, como descrita pelos canadenses, uma “banheira velha e remendada que transportava os mais pobres dos pobres” até o porto de Guayaquil, no Equador - onde os oficiais aduaneiros não exigiam muita papelada de  entrada ao país.
                                                  
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            Em Tumbes Bino comprou uma passagem na terceira classe no porão de uma Barca Quíchua, como ele havia planejado que saia de tarde e pela manhã chegava a Guayaquil.
            Bino já sabia que em Guayaquil  circulava o dólar americano, bem como a moeda nacional, o Balboa e ali ele aproveitaria para cambiar todos os Cruzeiros  Pesos Argentinos, Condores Chilenos e Soles de Oros Peruanos  por dólares para facilitar sua viagem.
            A três da tarde, ele entrou na velha barca e desceu duas secções abaixo do convés se alojou na terceira classe, que era o porão.  Lá ele conheceu um casal argentino, uma ruiva Mignone chamada Myrta cujo rosto lhe lembrava a Janis Joplin e o seu namorado, cabeludo, pouco mais alto do que ela, um tipo pálido, magro e com uma barriguinha de cerveja e ainda por cima apelidado de Mono.
            Eles pretendiam visitar as pirâmides Maia em Guatemala e a caminho conhecer Belize, um protetorado inglês que praticamente cortava o acesso da Guatemala ao mar do Caribe, e segundo o casal era um local mui hermoso e tinha lindas praias mornas e banhadas pelo Caribe.
            Enquanto eles falavam da beleza do pequeno protetorado inglês, Bino olhando espantado o número de nativo que empacotava o porão, com suas trouxas de roupa, suas caixas, galhinhas frutas, e todo o tipo de tranqueiras. A mente de Bino estava ocupada em achar um banheiro e uma saída de emergência, mas aparentemente não havia nenhum nem outro. O porão era quente, úmido e fedia,
            Bino conversou pouco com a Myrta e Mono, se limitando a dizer que ia visitar uns amigos em Guadalajara, encostou-se ao casco enferrujado da barca e achou melhor nem abrir a mochila ali para retirar o seu plástico para sentar no piso sujo.
            Aceitou um cigarro da Myrta e fumou mais para matar o cheio do local.
            Após três apitos longos Bino ouviu o barulho do motor, sentiu a trepidação do casco e minutos após ele já sentia o balanço do mar.
            A viagem seguia tranqüila, mas havia algumas coisas preocupava o Bino alem do banheiro e saída de emergência: Uma delas era que não havia nenhum colete salva vidas a vista. Outra, não havia extintores de incêndio. Também ele notou que a saída   para o convés superior, ou segunda classe, estava fechada com uma grade de ferro e trancada com corrente e cadeado.
            Na terceira classe também havia muitos indígenas mascando folhas de coca, outros bebendo chincha ou pisco e outros até alguns fumando, “mota” ou maconha. Mas esta gente descendente de Incas é povo quieto, tudo estava em paz e Bino ia sossegado em seu canto, porem não vendo a hora de sair daquela arapuca e ver a luz do dia em Guayaquil.
            Mono puxou conversa com ele e trocaram alguns endereços de hospedagem em Quito e Bino tinha o endereço de um bom pouso na Cidade de Guatemala, trocaram suas figurinhas e eles conversaram sobre suas experiências de estrada, Mono falando praticamente todo o tempo, o que para Bino estava muito bom.

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            Quase ao lado de Bino havia uma escada íngreme de ferro que levava a segunda classe, mas havia a grade de ferro, fechada a corrente e cadeado, que não permitia o tráfico da terceira para a segunda classe.
            A cara do Mono estava sangrando, sua camisa em farrapos, e o moço insultado estava agora irritado com Bino, pois ele estava apartando a briga e evitando que o baixinho furioso esfaqueasse o Mono. Para complicar as coisas a Myrta estava também empurrando os nativos, em defesa do filho-amante e agora eles começavam a bolinar a guria.
            Bino gritou a ela para subir a escada e berrar por socorro, o que ela fez.  Enquanto isto Bino puxou o Mono escada a cima e disse para ele subir as escadas e juntar-se a Myrta também pedindo socorro.
            Em seguida Bino se viu acuado por dois caras com facas agora ameaçando, vagarosamente a dar um bote em cima dele.  Com a mochila em seu braço como escudo para se defender ele foi subindo de costas as escadas quando um deles furou a mochila.
            – Aí fechou o tempo; Bino se agarrou ao corrimão e se defendia com pontapés, com a bota pesada adquirida no Rio Grande do Sul, e Myrta gritava por socorro e freneticamente sacudia a grade de ferro e Mono tentando também dar pontapés - mais estava muito apalermado para qualquer tipo de ajuda.
            Ninguém apareceu para acabar com a confusão. Talvez fosse mesmo por estes tipos de brigas que a tripulação tinha colocado aquela grade e fechado-a a cadeado.  Então Bino gritou a Myrta, vamos gritar fogo:
            – E os três começaram a berrar: Fogo, fuego, fuego
            Quase de imediato um oficial vestido de branco apareceu com um extintor, Myrta gritou para ele que queriam esfaquear seu noivo e que ele já esta ensangüentado.
            O oficial abriu a arapuca, ela passou para a segunda classe arrastando a tralha do Mono. Bino continuava a dar pontapés para se defender das facas, quando um dos caras agarrou a sua perna. O oficial esguichou uma nuvem branca de pó anti fogo em Bino e na turba, e continuou esvaziando o extintor em direção a escada, enquanto Bino tossindo e de cara branca passava também para a segunda classe - e outro tripulante que tinha chegado para ajudar, fechava o alçapão.
            Por grande parte da viagem Bino ficou tentando se limpar do pó branco do extintor, e os três permaneceram o resto da viagem no “conforto” da segunda classe.

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            Subindo para Quito, começou a chover copiosamente na serra e havia momentos que o engenheiro tinha que colocar a cabeça para fora do toldo do Jipe para ver a estrada. Houve várias paradas por conta de deslizamentos de lama e pedras na estrada e numa delas chegaram a esperar por várias horas. Uma viagem simples e rápida para Rio Bamba tornou-se muito demorada.
            As 05h30min da manhã eles chegaram exaustos a cidade e o jovem era um engenheiro civil, radicado em Rio Bamba que trabalhava em manutenção e capacitação de estradas. Voltava  da Capital onde participou de um simpósio de reforço de encostas por meio de produtos têxteis geodésicos. Era um patriota e parecia ter a inabalável fé em mudanças radicais em seu país, acreditava no progresso e reclamava muito da corrupção governamental.  Era uma pessoa culta e no campo de engenharia Bino e ele tiveram amplo terreno de conversação.
            Ele parou o jipe para abastecer num posto de gasolina e tomou um café com Bino. Em seguida ele conversou com um conhecido no posto e este arranjou uma carona para Bino num caminhão Fargo antigo, com a boleia que mais parecia um oratório de macumbeiro, toda decorada de santos, fitas e franjas.
            No Equador era costumeiro aos motoristas complementarem os seus salários levando passageiros de carona na boleia por um preço bem em conta. Estando a cabine já cheia, Bino foi grátis em cima das batatas, enroscado no saco de dormir debaixo de uma lona furada. Ele estava muito cansado e dormiu quase até chegar a Latacunga.
            O motorista era um mestiço simpático chamado Henrique. Ele parou numa área de vendedores que parecia ser uma feira improvisada e chamada de “Mercado Central” e gritou para as batatas:
            Eh Brasilenho vamos a comer.
            E sentaram-se num quiosque bem rudimentar e o motorista ordenou dois ajiacos em Quíchua, para duas jovens índias que atendiam a banca.
            Era meio dia e quinze, e o motorista se apresentou como Henrique e conversaram alguma coisa sobre futebol.
Em seguida se desculpou que a boleia do caminhão estava cheia com passageiros, e perguntou se deu para Bino descansar e Bino disse que não estava cansado e que praticamente dormiu o tempo todo e o motorista se sentiu melhor.
            Depois o Henrique falou que muitos destes passageiros eram tão pobres que pagavam a viagem com ovos, galinha, frutas e uma vez ele até aceitou um iguana, a qual ele afirmou não ter comido e depois ele disse meio sem jeito: – Aqui Brasilenho, as coisas são muito difíceis e qualquer coisinha ajuda, disse o motorista rindo - o que Bino interpretou como uma cobrança da viagem.
            Disse também que ele estava vindo direto de Loja, quase divisa com o Peru, onde ele pegou o carregamento de batatas. Ele disse a Bino que dirigia por quarenta e oito horas praticamente sem dormir, tirou algumas pestanas só em alguns trechos de manutenção da estrada, mas somando todas paradas, toalete incluído, não alcançava a duas horas de sono.
            Chegaram os ajiacos, servidos em uma tigela grande, acompanhado com tortilhas de milho. O cheiro era delicioso e o gosto ainda melhor. O Ajiaco era uma sopa com batatas com um bom pedaço de flanco de boi gorduroso, com salsinhas, coentro e que se comia de colher, como uma sopa, com as tortilhas.
            Bino pretendia a cooperar com o motorista, pagando pela comida modesta e ficar quites com a carona, pois “qualquer coisinha ajudava”, como tinha falado o motorista.
            Na comida o motorista confessou que agüentava o tranco das muitas horas acordado, mascando folhas de coca.
            Enquanto comiam a saborosa sopa andina, Bino falou que conheceu o mate-cola em Las Cuevas, e que em Cuzco tinha mascado umas folhas para melhorar o mal estar das alturas. Disse também que ele se sentiu triste quando viu o pobre do velho Inca que vinha morro acima, mascando as folhas e carregado de caixas como um animal de carga.
            O Henrique riu para Bino, com seus dentes pequenos, perfeitos, mas esverdeados, mordeu vagarosamente sua tortilha e disse:
            – Jovem não se sinta mal. O velho esse devia estar alegre e bem disposto. Estas folhas são a energia dos Incas e com elas um império foi criado. Também com elas o pobre do índio de Cuzco, consegue existir, pois vida, sem as folhas, eles não têm.
            – Em relação à “energia” isto é verdade; mas vi muitas cenas tristes com os nativos, e talvez estas folhas não sejam tão boas assim. E em São Paulo vi muita miséria causada pela cocaína.
            – Brasilenho você está enganado. Meu povo usa essas folhas medicinalmente e como estimulantes, a milhares de anos nos Andes.  Nunca esse costume, como o seu de beber café, causou problemas para nós.  E continuou:
            – O que criou problemas entre os nossos nativos foi o álcool. O pisco que o europeu empurrou aos índios. Ai está a raiz do problema, os hábitos trazidos pelos brancos a América.
            – Mas e a cocaína?
            – Também porcaria trazida pelos brancos. Eles não se contentam com as coisas boas da natureza e estão sempre querendo mais e mais. Tiram em laboratórios os cristais da pasta de folhas de coca para fazer a cocaína, a tal que você viu maltratando a gente no seu país. Tudo coisa dos brancos, tudo de laboratório, sem querer lhe ofender.
            Bino ficou quieto, partindo um bom pedaço de carne com a colher enquanto comia sua tortinha que estava enrolada como um charuto.
            O motorista acabou de comer a carne e as batatas, segurou sua tigela com as duas mãos e bebeu todo o caldo que sobrava. Em seguida limpou os lábios na manga da sua camisa comprida e depois colocou a mão numa bolsa artesanal de lã, e cheia de desenhos coloridos de motivo andino e retirou um bocado de folhas verdes as pôs na mesa.
            Depois pediu uma folha de jornal a uma das meninas atrás do balcão; ela trouxe, o motorista colocou as folhas no papel de jornal, fez um pacotinho e disse:
            Brasilenho ponha em sua mochila, você poderá necessitar da energia inca na estrada.
            – Mas isto pode me dar dor de cabeça, disse Bino.
            – Não nos Andes. Só as masques no interior. Autoridades em Quito nos perseguem por mascar as folhas de cocas, mas sabe por quê? Estão cansados de ter as ruas sujas, cheias de folhas cuspidas pelos nativos. Nada a ver com os efeitos das folhas, somente se aborrecem com a limpeza da cidade, em mostrar as coisas superficiais bem bonitas para os turistas.
            De novo ele riu calmo, resignado, com seus dentinhos verde-esperança.
            Bino terminou também o seu ajiaco, que desceu maravilhosamente na tarde fria, chuvosa e sombria dos Andes, e disse:
            – Por favor, deixe-me pagar a conta.
            Henrique o olhou confuso e um tanto irritado.  Ele disse:
            – Você é um estrangeiro em meu país - e meu convidado. Por favor, guarde o seu dinheiro.
            Bino se desculpou sem graça, e mais uma vez, a generosidade do povo inca, desta vez exercida por um caminhoneiro pobre, o comoveu.
            Ele saiu do modesto comedor com o motorista e este perguntou:
            – Você esta indo para Quito, não é?
            – Sim, é a minha próxima parada.
            Foram andando até uma Praça Colonial ainda do tempo dos espanhóis e lá o motorista encontrou foi em direção um caminhão Mercedes Benz, importado do Brasil. Era de um amigo dele chamado Zamora, que tinha acabado de entregar para um depósito uma carga de cobertores e retornava de caminhão vazio a Quito.
            Os dois conversaram em Quéchua e Zamora sorriu para Bino e disse:
            – Vamos Brasilenho, entre na cabine, pois sairemos daqui a pouco. Bino deu a mão a Zamora, e se despediu abraçando o amigo Henrique.
            – Brasilenho, como es mismo tu  nombre?
            – Mi nombre és Bino, e Henrique riu-se:
            – Você é o primeiro Bino que eu conheço.
            Henrique una preguntita, disse Bino, sorrindo: – Quando devo mascar estas folhas?
            – Somente em grandes alturas, quando lhe faltar um pouco o ar ou quando tiver que estar acordado e alerta de qualquer maneira - a guevos, disse ele rindo.
            – Mas isto não vicia?
            – Sim. Muito. Quando o homem branco brinca com as folhas, transformando-as em cristais, em droga.
            – Obrigado, disse Bino andando com Zamora para a sua mercedinha “cara chata” e o Henrique disse as suas costas: Que vayas com Dios!