segunda-feira, 21 de novembro de 2011

E A VIAGEM CONTINUA...

Em Tumbes Bino comprou uma passagem na terceira classe no porão de uma Barca Quíchua, como ele havia planejado que saia de tarde e pela manhã chegava a Guayaquil.
            Bino já sabia que em Guayaquil  circulava o dólar americano, bem como a moeda nacional, o Balboa e ali ele aproveitaria para cambiar todos os Cruzeiros  Pesos Argentinos, Condores Chilenos e Soles de Oros Peruanos  por dólares para facilitar sua viagem.
            A três da tarde, ele entrou na velha barca e desceu duas secções abaixo do convés se alojou na terceira classe, que era o porão.  Lá ele conheceu um casal argentino, uma ruiva Mignone chamada Myrta cujo rosto lhe lembrava a Janis Joplin e o seu namorado, cabeludo, pouco mais alto do que ela, um tipo pálido, magro e com uma barriguinha de cerveja e ainda por cima apelidado de Mono.
            Eles pretendiam visitar as pirâmides Maia em Guatemala e a caminho conhecer Belize, um protetorado inglês que praticamente cortava o acesso da Guatemala ao mar do Caribe, e segundo o casal era um local mui hermoso e tinha lindas praias mornas e banhadas pelo Caribe.
            Enquanto eles falavam da beleza do pequeno protetorado inglês, Bino olhando espantado o número de nativo que empacotava o porão, com suas trouxas de roupa, suas caixas, galhinhas frutas, e todo o tipo de tranqueiras. A mente de Bino estava ocupada em achar um banheiro e uma saída de emergência, mas aparentemente não havia nenhum nem outro. O porão era quente, úmido e fedia,
            Bino conversou pouco com a Myrta e Mono, se limitando a dizer que ia visitar uns amigos em Guadalajara, encostou-se ao casco enferrujado da barca e achou melhor nem abrir a mochila ali para retirar o seu plástico para sentar no piso sujo.
            Aceitou um cigarro da Myrta e fumou mais para matar o cheio do local.
            Após três apitos longos Bino ouviu o barulho do motor, sentiu a trepidação do casco e minutos após ele já sentia o balanço do mar.
            A viagem seguia tranqüila, mas havia algumas coisas preocupava o Bino alem do banheiro e saída de emergência: Uma delas era que não havia nenhum colete salva vidas a vista. Outra, não havia extintores de incêndio. Também ele notou que a saída   para o convés superior, ou segunda classe, estava fechada com uma grade de ferro e trancada com corrente e cadeado.

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Quase ao lado de Bino havia uma escada íngreme de ferro que levava a segunda classe, mas havia a grade de ferro, fechada a corrente e cadeado, que não permitia o tráfico da terceira para a segunda classe.
            A cara do Mono estava sangrando, sua camisa em farrapos, e o moço insultado estava agora irritado com Bino, pois ele estava apartando a briga e evitando que o baixinho furioso esfaqueasse o Mono. Para complicar as coisas a Myrta estava também empurrando os nativos, em defesa do filho-amante e agora eles começavam a bolinar a guria.
            Bino gritou a ela para subir a escada e berrar por socorro, o que ela fez.  Enquanto isto Bino puxou o Mono escada a cima e disse para ele subir as escadas e juntar-se a Myrta também pedindo socorro.
            Em seguida Bino se viu acuado por dois caras com facas agora ameaçando, vagarosamente a dar um bote em cima dele.  Com a mochila em seu braço como escudo para se defender ele foi subindo de costas as escadas quando um deles furou a mochila.
            – Aí fechou o tempo; Bino se agarrou ao corrimão e se defendia com pontapés, com a bota pesada adquirida no Rio Grande do Sul, e Myrta gritava por socorro e freneticamente sacudia a grade de ferro e Mono tentando também dar pontapés - mais estava muito apalermado para qualquer tipo de ajuda.
            Ninguém apareceu para acabar com a confusão. Talvez fosse mesmo por estes tipos de brigas que a tripulação tinha colocado aquela grade e fechado-a a cadeado.  Então Bino gritou a Myrta, vamos gritar fogo:
            – E os três começaram a berrar: Fogo, fuego, fuego
            Quase de imediato um oficial vestido de branco apareceu com um extintor, Myrta gritou para ele que queriam esfaquear seu noivo e que ele já esta ensangüentado.
            O oficial abriu a arapuca, ela passou para a segunda classe arrastando a tralha do Mono. Bino continuava a dar pontapés para se defender das facas, quando um dos caras agarrou a sua perna. O oficial esguichou uma nuvem branca de pó anti fogo em Bino e na turba, e continuou esvaziando o extintor em direção a escada, enquanto Bino tossindo e de cara branca passava também para a segunda classe - e outro tripulante que tinha chegado para ajudar, fechava o alçapão.
            Por grande parte da viagem Bino ficou tentando se limpar do pó branco do extintor, e os três permaneceram o resto da viagem no “conforto” da segunda classe.
                                                        
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Guayaquil era uma cidade extremamente quente e úmida ao ponto de ser desconfortável.
            Bino trocou todas as moedas latino-americanas por dólares no Banco de Guayaquil, o que deu cento e trinta e dois dólares. Essas notas, Bino escondeu num saquinho de couro pendurado por uma tira ao seu pescoço.
            Na rua ele comprou um sanduíche chamado Chivito, ou cabritinho, que era um pão Francês com uma carne deliciosa, mas não identificada, que supostamente era de cabrito e um refresco de arroz, cremoso, branco como leite,  muito gostoso e típico de Guayaquil chamado resbaladera. Com o mesmo ambulante Bino adquiriu informações sobre as estradas para Quito e optou pela mais viável que era a Estrada 35, direto de Guayaquil para a Capital do Equador.
            À tarde Bino já caminhava pela estrada, agitando a bandeira brasileira pelo acostamento da estrada e um jipe da Municipalidade de Rio Bamba parou e com um engenheiro civil muito simpático, Bino foi até a metade do percurso, confortavelmente.
            Parecia a Bino que quanto mais ele se aproximava do México, maior poder o futebol e a bandeira do Brasil exerciam na materialização de caronas.
            Apesar de Bino não ter acompanhado de perto a campanha da Seleção Brasileira, na América Latina ele era como um tipo de “embaixador de estrada” da “Seleção Canarinho” e Bino capitalizou bastante nesta simpatia geral para obter suas caronas.
                                                  
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Em Quito Bino foi bem tratado pelos religiosos do albergue: Teve seu banho quente, almoçou fartamente com os padres, monges e seminaristas e a noite, jogaram xadrez e conversaram assuntos diversos que giraram em torno de perguntas curiosas sobre as andanças de Bino, o que ele achou do Equador e até sobre o Tri Campeonato do Brasil. Também eles demonstraram estar preocupados com as ditaduras na América e fizeram muitas perguntas sobre a situação política do Brasil.
No dia seguinte depois do café da  manhã, Bino pediu um pedaço de sabão para lavar algumas pecas de roupa e eles sugeriram que deixasse a roupa num canto do quarto, uma senhora da limpeza iria lavá-las - e se ele pudesse, desse um pequeno agrado a ela.
Bino agradeceu novamente a amabilidade daqueles bondosos sacerdotes, concordou com a sugestão. Aproveitou o resto da manhã e foi remendar algumas meias, dar uns pontos no corte em sua mochila, um recuerdo da Barca Quíchua.
Depois almoçou com os seminaristas e foi tirar uma sesta em seu quarto que no passado foi uma cela medieval, com grades e paredes de quase metro e meio de espessura, aposento espartano, cujos móveis se resumiam em uma cama, cadeira, mesa e um crucifixo.
Bino acordou bem disposto ao redor das três da tarde e decidiu dar um giro na cidade pois o jantar seria tarde, só as oito da noite.
Bino estava apreciando as plantas exóticas do parque central, quando alguém lhe deu uma tapinha em seu ombro: Era o Mono com sua noiva, a Myrta. Ambos pareciam exaustos como se não tivessem dormido por um minuto desde o “desencontro” em Guayaquil.
A Myrta usava óculos escuros, tapando um hematoma no olho esquerdo, que disse ter sido um acidente na estrada e eles estavam cheirando mal.
– Oi Bino, parecem que as estradas foram boas com você, disse a Myrta sorrindo.
– Oi Mono, oi Myrta, eu acho que não posso reclamar delas no Equador.
Aí Mono veio com uma ladainha de problemas que ele teve na estrada, como que “estes índios” nos trataram mal. E uma série de outras conversas, que “ninguém gostava de argentinos” e outras falações. Depois, disse que tentou ir para as praias na província de Esmeraldas, não conseguiu carona e acabou vindo contra vontade para Quito, e Myrta escutava tudo aquilo com enfado e quieta.

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Bino andou rápido seis quarteirões até a rodoviária e provavelmente os monges e seminaristas não lhe envolveram com a polícia porque não ouviu as sirenes para seu lado.
Ele chegou a rodoviária, sentou-se num banco ao lado do guichê que vendia passagens para Tulcan, na fronteira do Equador com o sul da Colômbia.  Até a noite Bino tinha que deixar o Equador, pois seu passe de três dias expiraria.
No mapa ele calculou que indo pela Rodovia 25, que era simplesmente a continuação da Carretera Pan Americana, a distância seria de 350 quilômetros, e calculou, que pelas freqüentes paradas do ônibus e pelo estado das estradas no país, que, no mínimo, a viagem seria de oito horas.
Bino queria sair no primeiro ônibus as seis da manhã: Apesar do Equador não ter fronteiras com o Brasil e ele temia que houvesse troca de Telex entre as autoridades militares equatorianas e o DOPS do Brasil e ele pensou que na Colômbia, sob um governo de civis, ele estaria mais protegido.
Às cinco e meia Bino comprou seu ticket para Tulcan e estranhou que o preço fosse tão baixo, até que ele visse o “ônibus” chegar.

                                                  

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

PELA CARRETERA PANAMERICANA

            Após caminhar e pedir carona por quase hora e meia na estrada,    pegou uma Chivita, como são conhecidos estes “ônibus artesanais” e psicodelicamente ornamentados nos quais ele já tinha andado no Equador e foi rumo norte, na Pan Americana, rumo a Talara.
            A alguns quilômetros desta cidade a Chivita parou com um problema no motor e Bino decidiu pedir carona até a cidade. Parou uma caminhonete Dodge, modelo bem anterior ao começo da segunda grande guerra, de um mercador de peixe. 
            A boléia estava cheia, mas o motorista apertou a todos e Bino se espremeu entre quatro pessoas. Todos fediam a peixe e estavam alegres. Eram pescadores em dia de sorte. Ofereceram-lhe uma garrafa de pisco em que todos bebiam. Bino deu uma golada sem fazer cara feia, eles gostaram do Brasilenho e se desculparam do aperto. A carroceria estava cheia de peixe e gelo, coberta por uma lona e pingava uma água avermelhada que também fedia a peixe. Mas Bino agradeceu a Deus pela carona - e aos trancos e barrancos chegou meio “alegre” a Talara, uma pequena vila pesqueira e, como os pescadores, fedendo a peixe.
            Ao chegar ao mercado, os locais começaram a gozar do Bino, uns dizendo que ele estava usando “El Perfume de Gardênia” e outros rindo e falando claro e em rima, diziam que ele estava “apestado de pescado.”
            Mas, novamente, aconteceu um incidente que foi uma constante em sua viagem pela América latina: um guri viu a bandeirinha do Brasil cozida na parte de trás de sua mochila e ao se darem contas que o Bino era um verdadeiro descendente dos Conquistadores da Copa, a sua sorte mudou, talvez crendo que um conquistador não devesse feder a peixe.
            Levaram-no até um banho público perto do mercado de peixe onde, por alguns centavos, se tomava um belo banho frio e com direito a um pedaço de sabão. Esses banhos públicos eram uns cubículos de madeira carcomida, comum a Ibero - América, com um cano jorrando água continuamente - e os mochileiros e alguns hippies mais asseados, freqüentemente os usavam.
            Bino lavou a sua roupa com sabão e um guri admirador da Raza de los Campeones o levou de calção e sandália de dedo até uma lavandeira perto dali, onde uma senhora lavou,secou e passou a ferro de carvão todas as suas roupas, também por quase nada.
            Depois Bino foi a um bolicho perto da praia e comeu uma bela sopa de cabeça de peixe e lá ele ouviu, em detalhes, pela primeira vez, a campanha da Seleção Brasileira com dois pescadores que se sentaram a sua mesa.
            Estes pescadores conseguiram-lhe um lugar numa caminhonete International muito velha com sua carroceria coberta de lona e com pranchas a guisa de bancos para os passageiros - sendo a maioria deles nativos e mochileiros; era uma versão compacta do “pau-de-arara” brasileiro que transportava nordestinos pobres para Rio e São Paulo e Brasília, no passado. Nesse pau-de-arara, Bino chegou a Tumbes.
            Como já era quase noite e Bino estava exausto, ele se encaminhou ate uma pequena praia de areia muito branca que estava literalmente entre manguezais.
            Apesar de Tumbes ser uma cidade verde e não desértica, à noite pareceu que a temperatura esfriou um pouco, talvez até porque Bino estava com fome.  O vento soprava na praia em rajadas fortes, de direção não determinada, como se o ar mais aquecido do oceano começasse a brigar as camadas frigidas vindas das cordilheiras distantes. Bino retirou o seu saco de dormir, preso por correias de couro no topo da mochila, tirou também uma folha de plástico de metro e meio por dois, desdobrou-a e a colocou sobre a areia, firmada por quatro pedras. Em seguida, entrou no saco de dormir colocado sobre o plástico, se ajeitou nele, como sempre, passou braço direito da alça da mochila para não ser furtado, usou-a como travesseiro, e ficou a contemplar a lua e o céu, ouvindo as ondas a se espocarem na praia e dormiu, Dormiu pesado e só acordou quando o sol já brilhava forte.

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            Durante este período as estradas estavam fervilhando de gente pedindo carona e as aduanas entre os países latino americanos estavam tão movimentadas que os agentes aduaneiros estavam aceitando qualquer tipo de identidade dos sul-americanos, na ausência de seus passaportes, para desafogar as fronteiras. Entre estes mochileiros Bino conheceu o mexicano Victor Dominguez, o qual veio a se tornar um amigo fiel do Bino.
            Apesar de o Peru estar sob um governo Militar semelhante ao do Brasil, esta confusão nas fronteiras, certamente ira ajudar Bino a sair do Peru, assim ele pensava.
            Antes do reboliço da vitória da Seleção Brasileira de Futebol Bino ouviu muitos casos de pessoas que na apresentação do passaporte, foram presas e recambiadas ao Brasil ou Argentina; isto não era paranóia: era fato.  A verdade era que nos tempos da ditadura uma coisa andava muito bem organizada entre os países ditatoriais: a repressão.
            Enquanto Bino andava em direção ao centro da cidade ele se encontrou com dois mochileiros canadenses, e como sempre eles sempre fazem, pararam, “trocaram figurinhas”, endereços de pousos e albergues, falaram sobre os locais e cidades mais amigáveis, sobre tratamento em aduanas, enfim aquela mesma  estória de planejar com antecedência a logística de sobrevivência para a próxima parada.
            Os canadenses também falaram que chegaram de Guayaquil em uma barca, saíram de Guayaquil à tarde, navegaram toda a noite e chegaram a Tumbes de manha. Reiteraram que a burocracia portuária era pequena, que de terceira classe a viagem  custava centavos e no porão dava ate para dormir.
            Ao se despedirem, Bino já tinha um plano de ação: Sairia do Peru por Tumbes numa “Barca Quíchua”, como descrita pelos canadenses, uma “banheira velha e remendada que transportava os mais pobres dos pobres” até o porto de Guayaquil, no Equador - onde os oficiais aduaneiros não exigiam muita papelada de  entrada ao país.
                                                  
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            Em Tumbes Bino comprou uma passagem na terceira classe no porão de uma Barca Quíchua, como ele havia planejado que saia de tarde e pela manhã chegava a Guayaquil.
            Bino já sabia que em Guayaquil  circulava o dólar americano, bem como a moeda nacional, o Balboa e ali ele aproveitaria para cambiar todos os Cruzeiros  Pesos Argentinos, Condores Chilenos e Soles de Oros Peruanos  por dólares para facilitar sua viagem.
            A três da tarde, ele entrou na velha barca e desceu duas secções abaixo do convés se alojou na terceira classe, que era o porão.  Lá ele conheceu um casal argentino, uma ruiva Mignone chamada Myrta cujo rosto lhe lembrava a Janis Joplin e o seu namorado, cabeludo, pouco mais alto do que ela, um tipo pálido, magro e com uma barriguinha de cerveja e ainda por cima apelidado de Mono.
            Eles pretendiam visitar as pirâmides Maia em Guatemala e a caminho conhecer Belize, um protetorado inglês que praticamente cortava o acesso da Guatemala ao mar do Caribe, e segundo o casal era um local mui hermoso e tinha lindas praias mornas e banhadas pelo Caribe.
            Enquanto eles falavam da beleza do pequeno protetorado inglês, Bino olhando espantado o número de nativo que empacotava o porão, com suas trouxas de roupa, suas caixas, galhinhas frutas, e todo o tipo de tranqueiras. A mente de Bino estava ocupada em achar um banheiro e uma saída de emergência, mas aparentemente não havia nenhum nem outro. O porão era quente, úmido e fedia,
            Bino conversou pouco com a Myrta e Mono, se limitando a dizer que ia visitar uns amigos em Guadalajara, encostou-se ao casco enferrujado da barca e achou melhor nem abrir a mochila ali para retirar o seu plástico para sentar no piso sujo.
            Aceitou um cigarro da Myrta e fumou mais para matar o cheio do local.
            Após três apitos longos Bino ouviu o barulho do motor, sentiu a trepidação do casco e minutos após ele já sentia o balanço do mar.
            A viagem seguia tranqüila, mas havia algumas coisas preocupava o Bino alem do banheiro e saída de emergência: Uma delas era que não havia nenhum colete salva vidas a vista. Outra, não havia extintores de incêndio. Também ele notou que a saída   para o convés superior, ou segunda classe, estava fechada com uma grade de ferro e trancada com corrente e cadeado.
            Na terceira classe também havia muitos indígenas mascando folhas de coca, outros bebendo chincha ou pisco e outros até alguns fumando, “mota” ou maconha. Mas esta gente descendente de Incas é povo quieto, tudo estava em paz e Bino ia sossegado em seu canto, porem não vendo a hora de sair daquela arapuca e ver a luz do dia em Guayaquil.
            Mono puxou conversa com ele e trocaram alguns endereços de hospedagem em Quito e Bino tinha o endereço de um bom pouso na Cidade de Guatemala, trocaram suas figurinhas e eles conversaram sobre suas experiências de estrada, Mono falando praticamente todo o tempo, o que para Bino estava muito bom.

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            Quase ao lado de Bino havia uma escada íngreme de ferro que levava a segunda classe, mas havia a grade de ferro, fechada a corrente e cadeado, que não permitia o tráfico da terceira para a segunda classe.
            A cara do Mono estava sangrando, sua camisa em farrapos, e o moço insultado estava agora irritado com Bino, pois ele estava apartando a briga e evitando que o baixinho furioso esfaqueasse o Mono. Para complicar as coisas a Myrta estava também empurrando os nativos, em defesa do filho-amante e agora eles começavam a bolinar a guria.
            Bino gritou a ela para subir a escada e berrar por socorro, o que ela fez.  Enquanto isto Bino puxou o Mono escada a cima e disse para ele subir as escadas e juntar-se a Myrta também pedindo socorro.
            Em seguida Bino se viu acuado por dois caras com facas agora ameaçando, vagarosamente a dar um bote em cima dele.  Com a mochila em seu braço como escudo para se defender ele foi subindo de costas as escadas quando um deles furou a mochila.
            – Aí fechou o tempo; Bino se agarrou ao corrimão e se defendia com pontapés, com a bota pesada adquirida no Rio Grande do Sul, e Myrta gritava por socorro e freneticamente sacudia a grade de ferro e Mono tentando também dar pontapés - mais estava muito apalermado para qualquer tipo de ajuda.
            Ninguém apareceu para acabar com a confusão. Talvez fosse mesmo por estes tipos de brigas que a tripulação tinha colocado aquela grade e fechado-a a cadeado.  Então Bino gritou a Myrta, vamos gritar fogo:
            – E os três começaram a berrar: Fogo, fuego, fuego
            Quase de imediato um oficial vestido de branco apareceu com um extintor, Myrta gritou para ele que queriam esfaquear seu noivo e que ele já esta ensangüentado.
            O oficial abriu a arapuca, ela passou para a segunda classe arrastando a tralha do Mono. Bino continuava a dar pontapés para se defender das facas, quando um dos caras agarrou a sua perna. O oficial esguichou uma nuvem branca de pó anti fogo em Bino e na turba, e continuou esvaziando o extintor em direção a escada, enquanto Bino tossindo e de cara branca passava também para a segunda classe - e outro tripulante que tinha chegado para ajudar, fechava o alçapão.
            Por grande parte da viagem Bino ficou tentando se limpar do pó branco do extintor, e os três permaneceram o resto da viagem no “conforto” da segunda classe.

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            Subindo para Quito, começou a chover copiosamente na serra e havia momentos que o engenheiro tinha que colocar a cabeça para fora do toldo do Jipe para ver a estrada. Houve várias paradas por conta de deslizamentos de lama e pedras na estrada e numa delas chegaram a esperar por várias horas. Uma viagem simples e rápida para Rio Bamba tornou-se muito demorada.
            As 05h30min da manhã eles chegaram exaustos a cidade e o jovem era um engenheiro civil, radicado em Rio Bamba que trabalhava em manutenção e capacitação de estradas. Voltava  da Capital onde participou de um simpósio de reforço de encostas por meio de produtos têxteis geodésicos. Era um patriota e parecia ter a inabalável fé em mudanças radicais em seu país, acreditava no progresso e reclamava muito da corrupção governamental.  Era uma pessoa culta e no campo de engenharia Bino e ele tiveram amplo terreno de conversação.
            Ele parou o jipe para abastecer num posto de gasolina e tomou um café com Bino. Em seguida ele conversou com um conhecido no posto e este arranjou uma carona para Bino num caminhão Fargo antigo, com a boleia que mais parecia um oratório de macumbeiro, toda decorada de santos, fitas e franjas.
            No Equador era costumeiro aos motoristas complementarem os seus salários levando passageiros de carona na boleia por um preço bem em conta. Estando a cabine já cheia, Bino foi grátis em cima das batatas, enroscado no saco de dormir debaixo de uma lona furada. Ele estava muito cansado e dormiu quase até chegar a Latacunga.
            O motorista era um mestiço simpático chamado Henrique. Ele parou numa área de vendedores que parecia ser uma feira improvisada e chamada de “Mercado Central” e gritou para as batatas:
            Eh Brasilenho vamos a comer.
            E sentaram-se num quiosque bem rudimentar e o motorista ordenou dois ajiacos em Quíchua, para duas jovens índias que atendiam a banca.
            Era meio dia e quinze, e o motorista se apresentou como Henrique e conversaram alguma coisa sobre futebol.
Em seguida se desculpou que a boleia do caminhão estava cheia com passageiros, e perguntou se deu para Bino descansar e Bino disse que não estava cansado e que praticamente dormiu o tempo todo e o motorista se sentiu melhor.
            Depois o Henrique falou que muitos destes passageiros eram tão pobres que pagavam a viagem com ovos, galinha, frutas e uma vez ele até aceitou um iguana, a qual ele afirmou não ter comido e depois ele disse meio sem jeito: – Aqui Brasilenho, as coisas são muito difíceis e qualquer coisinha ajuda, disse o motorista rindo - o que Bino interpretou como uma cobrança da viagem.
            Disse também que ele estava vindo direto de Loja, quase divisa com o Peru, onde ele pegou o carregamento de batatas. Ele disse a Bino que dirigia por quarenta e oito horas praticamente sem dormir, tirou algumas pestanas só em alguns trechos de manutenção da estrada, mas somando todas paradas, toalete incluído, não alcançava a duas horas de sono.
            Chegaram os ajiacos, servidos em uma tigela grande, acompanhado com tortilhas de milho. O cheiro era delicioso e o gosto ainda melhor. O Ajiaco era uma sopa com batatas com um bom pedaço de flanco de boi gorduroso, com salsinhas, coentro e que se comia de colher, como uma sopa, com as tortilhas.
            Bino pretendia a cooperar com o motorista, pagando pela comida modesta e ficar quites com a carona, pois “qualquer coisinha ajudava”, como tinha falado o motorista.
            Na comida o motorista confessou que agüentava o tranco das muitas horas acordado, mascando folhas de coca.
            Enquanto comiam a saborosa sopa andina, Bino falou que conheceu o mate-cola em Las Cuevas, e que em Cuzco tinha mascado umas folhas para melhorar o mal estar das alturas. Disse também que ele se sentiu triste quando viu o pobre do velho Inca que vinha morro acima, mascando as folhas e carregado de caixas como um animal de carga.
            O Henrique riu para Bino, com seus dentes pequenos, perfeitos, mas esverdeados, mordeu vagarosamente sua tortilha e disse:
            – Jovem não se sinta mal. O velho esse devia estar alegre e bem disposto. Estas folhas são a energia dos Incas e com elas um império foi criado. Também com elas o pobre do índio de Cuzco, consegue existir, pois vida, sem as folhas, eles não têm.
            – Em relação à “energia” isto é verdade; mas vi muitas cenas tristes com os nativos, e talvez estas folhas não sejam tão boas assim. E em São Paulo vi muita miséria causada pela cocaína.
            – Brasilenho você está enganado. Meu povo usa essas folhas medicinalmente e como estimulantes, a milhares de anos nos Andes.  Nunca esse costume, como o seu de beber café, causou problemas para nós.  E continuou:
            – O que criou problemas entre os nossos nativos foi o álcool. O pisco que o europeu empurrou aos índios. Ai está a raiz do problema, os hábitos trazidos pelos brancos a América.
            – Mas e a cocaína?
            – Também porcaria trazida pelos brancos. Eles não se contentam com as coisas boas da natureza e estão sempre querendo mais e mais. Tiram em laboratórios os cristais da pasta de folhas de coca para fazer a cocaína, a tal que você viu maltratando a gente no seu país. Tudo coisa dos brancos, tudo de laboratório, sem querer lhe ofender.
            Bino ficou quieto, partindo um bom pedaço de carne com a colher enquanto comia sua tortinha que estava enrolada como um charuto.
            O motorista acabou de comer a carne e as batatas, segurou sua tigela com as duas mãos e bebeu todo o caldo que sobrava. Em seguida limpou os lábios na manga da sua camisa comprida e depois colocou a mão numa bolsa artesanal de lã, e cheia de desenhos coloridos de motivo andino e retirou um bocado de folhas verdes as pôs na mesa.
            Depois pediu uma folha de jornal a uma das meninas atrás do balcão; ela trouxe, o motorista colocou as folhas no papel de jornal, fez um pacotinho e disse:
            Brasilenho ponha em sua mochila, você poderá necessitar da energia inca na estrada.
            – Mas isto pode me dar dor de cabeça, disse Bino.
            – Não nos Andes. Só as masques no interior. Autoridades em Quito nos perseguem por mascar as folhas de cocas, mas sabe por quê? Estão cansados de ter as ruas sujas, cheias de folhas cuspidas pelos nativos. Nada a ver com os efeitos das folhas, somente se aborrecem com a limpeza da cidade, em mostrar as coisas superficiais bem bonitas para os turistas.
            De novo ele riu calmo, resignado, com seus dentinhos verde-esperança.
            Bino terminou também o seu ajiaco, que desceu maravilhosamente na tarde fria, chuvosa e sombria dos Andes, e disse:
            – Por favor, deixe-me pagar a conta.
            Henrique o olhou confuso e um tanto irritado.  Ele disse:
            – Você é um estrangeiro em meu país - e meu convidado. Por favor, guarde o seu dinheiro.
            Bino se desculpou sem graça, e mais uma vez, a generosidade do povo inca, desta vez exercida por um caminhoneiro pobre, o comoveu.
            Ele saiu do modesto comedor com o motorista e este perguntou:
            – Você esta indo para Quito, não é?
            – Sim, é a minha próxima parada.
            Foram andando até uma Praça Colonial ainda do tempo dos espanhóis e lá o motorista encontrou foi em direção um caminhão Mercedes Benz, importado do Brasil. Era de um amigo dele chamado Zamora, que tinha acabado de entregar para um depósito uma carga de cobertores e retornava de caminhão vazio a Quito.
            Os dois conversaram em Quéchua e Zamora sorriu para Bino e disse:
            – Vamos Brasilenho, entre na cabine, pois sairemos daqui a pouco. Bino deu a mão a Zamora, e se despediu abraçando o amigo Henrique.
            – Brasilenho, como es mismo tu  nombre?
            – Mi nombre és Bino, e Henrique riu-se:
            – Você é o primeiro Bino que eu conheço.
            Henrique una preguntita, disse Bino, sorrindo: – Quando devo mascar estas folhas?
            – Somente em grandes alturas, quando lhe faltar um pouco o ar ou quando tiver que estar acordado e alerta de qualquer maneira - a guevos, disse ele rindo.
            – Mas isto não vicia?
            – Sim. Muito. Quando o homem branco brinca com as folhas, transformando-as em cristais, em droga.
            – Obrigado, disse Bino andando com Zamora para a sua mercedinha “cara chata” e o Henrique disse as suas costas: Que vayas com Dios!