quarta-feira, 31 de agosto de 2011

EM FUGA, ATRAVESSANDO O BRASIL

Bino ouvia e enfiava os sacos de papel com os lanches na mochila e
tentava acomodar de qualquer jeito a pequena garrafa térmica na mochila.
Ele estava lívido de medo.
– Você tem que chegar a Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Este e o
seu destino final. Se puder evite as capitais: principalmente Porto Alegre.
Lá a barra pesa. Os milicos são fortes por lá.
– Entendi.
– Memorize este número: 48-5000. Pense rápido: o numero começa
com o numeral quatro, o segundo e o dobro do primeiro e o terceiro
numero e cinco mil. Memorize isto.
– Mas...
– Memorize homem; estamos chegando. Termine de enfiar esta térmica
nesta merda de mochila, logo!
– quatro – oito - cinco mil, repetiu ele.
– Nunca escreva este número. Guarde só na cabeça.
– Chamando o cara de Uruguaiana de cara ele vai lhe perguntar se você
viu o Fidelis. Aí você perguntara a ele: Qual Fidelis?
– Ele lhe respondera: – O amigo do Lelé do Rio. Lelé Boca Mole, só isto.
– Amigo do Lelé Boca Mole repetiu Bino.
– Se ele não falar no fulano este, saia fora, deu zebra.
– Os contra-revolucionários já devem ter também a sua ficha. Não
se espante se receber ajuda de fontes inesperadas. Ainda por cima,
por trás de você parece haver um “costa quente”. E parece ser ele
um “cachorro grande”.
– Começando agora e ate o final do mês, ponha sempre um pontinho
preto no pulso direito, acima do seu relógio; um pontinho discreto. Isto
poderá abrir algumas portas.
– Mas tem muitas coisas a guardar na cabeça e estou nervoso, gaguejou
o Bino suando fedido de medo.
– Olhe seu merda, você vai se sair bem. Você tem que salvar seu pelo,
pois você tem muito a testemunhar!
– Já estamos quase lá: Gritou Antônio pisando a fundo no acelerador.
E continuou num só fôlego:
– Primeiro a Kombi. A o cara trocando pneu é louro. Placas de São Paulo.
– Cara louro placas de São Paulo, gaguejou Bino.
– Se não aparecer, se vire! Pegue carona e suma daqui e depois vá
para o litoral, por lá tem mais caras de mochila, estes turistas baratos
e andarilhos argentinos. 
– Sim. Pelo litoral...
– Telefone de emergência; 248-...
– Cinco mil, completou Bino.

    * * * * * * * * * * * * * *

Saiu sorrateiramente do silo sujo e o ar na noite quase lhe fez mal.
Ele pegou capim seco que havia ao redor e tentou cobriu a evidencia
de sua estadia naquele buraco da melhor maneira possível e em
seguida agarrou a sua mochila e foi pelo mato beirando a estrada
em direção ao Scania.
Encontrou um local onde as cordas de amarração da lona não
estavam tão apertadas e afrouxou-as ainda mais e conseguiu
entrar na carga.
Sabendo que o motorista poderia notar o ponto de entrada na
carroceria ele se encolheu entre dois fardos bem na dianteira
da carga, se enrolou num plástico que devia ser sobra para embrulhar
algum fardo, e mais ou menos se enterrou em algodão.
Ao redor das duas da manhã o caminhão saiu e o motorista nem
notou que parte da lona estava frouxa. Aparentemente para Bino o
caminhão ia em direção oposta ao porto, mas depois de um tempo
na estrada sinuosa ele perdeu totalmente o seu senso de direção.
O caminhão seguia devagar e Bino adormeceu. Mais ou menos uma
hora depois o caminhão parou, parecia ter parado num posto da
policia rodoviária, ele ouviu a conversa do caminhoneiro e policiais,
mas era assunto de documentação e peso de carga, e o caminhão
seguiu em frente.
Bino escutou que a lona frouxa do lado do caminhão, por onde ele
tinha entrado, começava a bater no vento.
Às três da manhã o caminhão parou num posto. O motorista reclamou
com um dos atendentes que a lona havia se afrouxado e batia tanto
que ele nem podia se concentrar na estrada; após o abastecimento o
motorista e o atendente apertaram as cordas e prenderam bem a lona;
em seguida o caminhão deixou a bomba de gasolina e ganhou a estrada.
Tudo estava escuro e ele pensou ouvir o nome São Jose dos Pinhais.

       * * * * * * * * * * * * * *

Joinville era uma cidade pequena e linda, praticamente espremida
entre a majestosa Serra do Mar e a linda Baia de Babitonga. Lá, sem
maiores problemas, Bino conseguiu pouso num alojamento Católico.
Quase tudo parecia ser bem organizado em Joinville: O alojamento,
os padres, o povo e a cidade. Ele se sentiu como se estivesse numa
vila européia de um dos filmes que tinha visto.
Não parecia Brasil. Certamente não a sua João Neiva. A cidade pulsava,
os locais andavam rápidos e com propósito em seus movimentos,
suas respostas eram breves, educadas e no ponto, não havia sujeira
nas ruas e mais: o jornal local era escrito meio a meio: em português -
e alemão gótico.
Uma coisa que Bino nunca se esqueceu de Joinville é que lá foi o
primeiro local do Brasil que ele viu louras tingindo o cabelo de preto.
Joinville tinha muita influência nórdica: Na cidade ele comeu muita
comida alemã e até comeu sauerkraut, como eles chamavam o chucrute.
Nas padarias havia pães que ele nunca tinha visto - como os pães de
centeio, as cucas e muitas variedades de confeitaria, Bino comeu muita
batata, quase não viu o feijão e nunca viu tantas variedades de salsichas,
as quais os locais chamavam de wurst.
Cerveja nem se fala: tomavam em grandes copos de vidro grosso que
eles chamavam em alemão de Stein e tinha uma cachaça alemã chamada
de Steinhaegger que deixou Bino com dor de cabeça.
A cidade era pitoresca, a bem perto da Baia de Babitonga, local
deslumbrante, na época com muitas praias e enseadas prístinas.
A cidade tinha um distrito industrial muito grande, e Bino pensou que
voltando ao Brasil, lá seria um bom lugar para encontrar trabalho e se viver.


domingo, 21 de agosto de 2011

COMEÇA A PERSEGUIÇÃO POLITICA

O pequeno mundo criado por Bino no interior de São Saulo era pequeno,
mas bem organizado e ele jamais imaginaria que a sua aparente
segurança na sua querida Papabesourolandia em breve iria
desintegrar-se.
Um de seus colegas de quarto, Newton, tinha um quadro com uma
foto de Che Guevara, retirada da capa de uma velha revista. Esse
quadro estava afixado numa das paredes do apartamento deles.
O jovem estudante não tinha inclinações políticas e, além da
engenharia, seu único foco de interesse eram as moças.
Newton era um rapaz atraente, alto, de cabelos ondulados bem
escuros, e tinha um grande número de moças à sua disposição.
Ele era um rapaz do tipo despreocupado, confiante em si mesmo,
e sua pretensa atitude de protesto era muito bem representada
pelo pôster de Che Guevara ali no seu quarto – o que lhe propiciava
até mesmo uma popularidade maior com as garotas.
Todo o mundo gostava muito de Newton. Ele não ligava para
dinheiro. Alguns dias depois de receber a mesada de seus
pais ele já estava curto de dinheiro, mas era feliz tanto quanto
podia. Ele jogava futebol no time da Unicamp, e era um dos
atacantes da equipe. Ele sempre marcava gols, até mesmo
quando jogava com ressaca de bebidas.

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Numa quarta-feira, Bino e Newton estavam em seu apartamento
em Atibaia sem mais ninguém, pois o outro colega de quarto,
que tinha uma personalidade um tanto evasiva e tímida, havia
se retirado por alguns dias.
Às três horas da madrugada, cinco agentes do DOPS, esse abjeto
Departamento de Ordem Política e Social, arrombaram a porta de
entrada do apartamento, armados com armas de mão e
submetralhadoras.
Bino e Newton foram levados para a sala. Um dos oficiais
retornou ao quarto de Newton, arrancou o quadro de Che Guevara
da parede e o levou para a sala. Os oficiais pisotearam no quadro,
esmagaram com seus pés a figura e depois puseram a cara do
Newton nos estilhaços de vidro, pedaços de moldura quebrada
e papel espedaçado e gritavam para e que Newton comesse os
fragmentos do Guevara com vidro e tudo.
Ele se levantou, e então o atingiram na cabeça com a coronha
de uma submetralhadora. Foi um golpe tão forte que Bino ouviu
o som de um osso quebrar-se. Caído no chão, de cara nos estilhaços
de vidro, Newton foi maldosamente chutado e batido.

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Seu apartamento havia sido totalmente revistado – em busca
de armas e de literatura subversiva. Esta gente certamente tinha
levantado a ficha do Bino e deviam saber que ele não era um
“subversivo”, mas temendo a sua morte deviam estar procurando
algo para também o incriminar.
Embora nada pudesse ter sido encontrado ali, isso não significava
nada, pois era muito comum o DOPS forjar falsas evidências e
Bino era o perfeito candidato.
Tommy, pelo fato de ser estrangeiro, não estava numa posição
muito confortável com o governo militar, contratou o mesmo advogado
para si próprio e para avaliar a condição em que Bino se encontrava.
Por enquanto, pelo que se soubesse nada havia sido “plantado”
em seu apartamento.
Newton, porém, havia desaparecido, e não se sabia do seu
paradeiro. E versão oficial era de que ele havia fugido. Mas,
prevalecia o pensamento de que ele estava morto, tendo o
DOPS eliminado qualquer evidência do ocorrido, inclusive
dando sumiço ao corpo do rapaz.
Como Bino era uma testemunha ocular do crime, ele corria
grande perigo.
O advogado disse que o pessoal do DOPS já começava a
referi-se a ele como com cúmplice do Newton - e ele tinha se
tornado um arquivo a ser queimado.
Então o Bino sumiu também.

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Uma circular foi emitida no estado de São Paulo para a prisão de
Bino. Através de companheiros maçons, Tommy deu um jeito junto
a Policia Federal e um passaporte de Bino rapidamente lhe foi
enviado, através do estado do Espírito Santo. O passaporte foi
emitido antes que uma cópia da circular chegasse naquele estado
e não deixaram vestígios sobre a emissão do tal passaporte. 
O pastor Haroldo informou a Tommy que os Consulados Americanos
e a Embaixada em Brasília estavam cheios de agentes secretos da
CIA. Ele disse a Tommy, em resumo, que um agente americano da CIA,
de nome Dan Mitrione, tinha vindo para dar um treinamento ao DOPS.
Mitrione era perito em extrair confissão até de gente morta; era um
psicopata e torturador profissional, calejado da guerra fria e agora
transferia parte de sua propriedade intelectual para o Brasil.
Tommy não podia confiar no Consulado dos Estados Unidos, pois
estava também comprometido. Ele podia somente falar com o seu
amigo, o Adido Comercial, que era bem próximo do vice-cônsul.
À surdina, os dois cuidaram dos Termos de Responsabilidade
assumidos pelo Rev. Tommy para que Bino entrasse e permanecesse
nos Estados Unidos.

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O Consulado, através do adido, expediu então a Bino um visto
americano para estudante e no seu passaporte carimbaram uma
Visa F-4, válida por cinco anos.
Uma vez resolvidas todas essas questões, surgiu inesperadamente
outro problema. Uma passagem de avião num vôo internacional, que
levasse Bino para fora do Brasil, precisaria ser desembaraçada
antecipadamente pela Policia Federal. Além disso, era necessário
um Atestado de Idoneidade Política antes que o DOPS carimbasse
a passagem com a expressão “válida para viagem” estabelecendo
o dia e a hora da partida.

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Os que morriam nada podiam falar, e os loucos não tinham credibilidade
alguma, ao mencionarem os tormentos por que haviam passado.
O caso de Mitrione e a CIA ter sido exposto pelos jornais, bem como a
notícia de frei Tito ter sido preso e torturado, e ainda o caso de um
estudante de engenharia desaparecer sem possuir antecedentes
políticos ou criminais, tudo isso fez com que os militares passassem
a pressionar o DOPS a pôr ordem em toda aquela embrulhada.
A Gestapo Tropical pretendia “queimar o arquivo” que Bino era.
Pois ele sabia demais e precisava “desaparecer” antes de tornar-se
um caso de grande repercussão.
Haroldo conseguiu fazer com que Bino fosse levado a amigos de
amigos que providenciaram uma caminhonete para levá-lo até para
fora do Brasil de carro. A fronteira escolhida foi em Uruguaiana,
uma tríplice fronteira entre Brasil Uruguai e Argentina.
Decidiram sair para a Argentina. Percorreriam quase dois mil
quilômetros e lá chegando, o plano seria que Bino entrasse naquele
país passando pela Ponte da Amizade sobre o Rio Uruguai que ligava
a cidade de Uruguaiana a de Passo de Los Libres. Pela ponte havia
sempre um grande trânsito de pedestres, onde tanto argentinos como
brasileiros passavam sem a apresentação de documentos.
            A caminhonete o deixaria em Uruguaiana; Bino atravessaria
a ponte com a sua mochila e seus documentos do Brasil.

http://blog.zequinhabarreto.org.br/2008/09/04/memorias-de-um-ex-guerrilheiro

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Um simbolo de resistencia na ditadura militar

...Em menos de meia década aquela pequena comunidade em
Ibiraçu cresceria e se tornaria um grande complexo Zen Budista, com
muitas edificações e parques de meditação; tornar-se-ia uma respeitada
força religiosa naquela região, e estava organizada para prestar um trabalho
de natureza social e para a redenção da dignidade humana.
O zelo daquele pequeno número de adeptos faria com que se
reproduzissem, por todo o Brasil, muitos outros templos e retiros da linha
Zen Budista. Naqueles dias, porém, Hare Krishna era ainda um movimento
embrionário, que apelava aos jovens e aos que estavam em busca de
algo novo.
Os Krishnas, bem como os Hippies, se tornaram quase um símbolo
da resistência pacífica contra a ditadura militar e nos Estados Unidos
um protesto à Guerra do Vietnam - e em ambos os países uma forma de
protesto contra as religiões institucionalizadas e “donas da verdade”.
Naqueles dias de tribulação, o movimento Hare Krishna, silenciosamente
e com grande coragem, abraçou e protegeu muitos jovens que
eram fugitivos da perseguição política.
Muitos daqueles refugiados políticos trouxeram suas próprias
ideias religiosas e filosóficas ao Retiro. Algumas foram misturadas dentro
do caldeirão fervente dos exóticos rituais do Hare Krishna, e posteriormente
essa mistura se consolidou, numa forma Zen Budista de crenças.
Lentamente essa nova seita foi encontrando espaço entre os adeptos do
judaísmo, do cristianismo, do espiritismo, do xintoísmo, do islamismo e
das seitas afro-brasileiras.
Toda essa variada mistura teológica passou a coexistir
harmonicamente no acampamento: os religiosos cultuavam o Senhor
Krishina, mas com a liberdade alguns deles acrescentavam ao hinduísmo
alguns matizes de outras religiões ou mesmo de seitas exóticas.

* * * * * *

A difamação dos Hare Krishnas realizada por alguns sacerdotes
italianos de João Neiva fez com que Bino ficasse irado e decepcionado
com eles. Os Hare Krishnas eram pessoas boas. Tinham apenas um modo
diferente de cultuar seus muitos deuses, e a Bino, à primeira vista, parecia
que o Krishna era um deus peso-pesado, entre outros da mesma categoria,
e mais outros pesos-médios e leves. Sim, os Krishnas eram meio esquisitos,
sem dúvida, porém, não eram bárbaros, nem gastavam tempo depreciando
outras religiões.
Bino se viu enganado: ele havia confiado nas palavras dos padres
e chegara a se convencer que eles eram do mal e disfarçava o medo e a
ignorância deles com ódio. Nas férias passadas, com os gêmeos Fantini,
e outros rapazes de Ibiraçu e João Neiva, chegaram até cogitar a queima
do Retiro deles, por acreditarem serem soldados cristãos e se sentiam
importantes com este titulo. Por que razão os sacerdotes mentiram? Seriam
os padres ignorantes ou pior, eram maliciosos? Por que teriam mentido
para os paroquianos?
Talvez suas mentiras tenham sido trazidas pelo medo de perder
ainda mais os seus paroquianos, como já tinha ocorrido para os maçons
e para as congregações evangélicas que mais e mais se proliferavam.
Bino notou que os sacerdotes colocavam apelidos em todos os
que não jogavam em seus times: eles chamavam os maçons de “bodes” e
os batistas de “bíblias” e, quanto aos últimos, ponderou Bino, foram assim
apelidados, por andarem o tempo todo esquentando suas bíblias debaixo
de seus sovacos.
A experiência que Bino estava tendo com os Hare Krishna lhe fez
pensar muito – como nunca antes – sobre a intolerância entre as pessoas
e sobre o malévolo dogmatismo de muitas religiões.
Ele pôde ver que era vantajoso para os sacerdotes manterem os
habitantes da Vila tão ignorantes quanto possível. Nada de estudos bíblicos
como os bíblias, nada de leituras como os bodes, nada de um permanente
pensar, de ler, estudar e meditar como os Hare Krishna – e assim a
palavra obscura dos padres tornou-se lei.
Bino sentiu-se manipulado e ressentido; ele se lembrou que, quando
criança, ele e outros meninos foram incitados a urinar na Igreja Batista.
“Poxa, isto foi uma grande sacanagem”, pensou ele.
Sim à noite, antes dos cultos dos bíblias, Bino e a garotada urinavam
na frente e lado da igreja Batista e faziam com que o lugar ficasse
fedendo como mictório de estação de trem. Ignorados pelos bíblias, que
resignados punham-se a lavar as mijadas, eles começaram então a apdrejar
as janelas da Loja Maçônica.
  

sábado, 13 de agosto de 2011

A 'boca do capeta' - lembranças do jovem Bino

A primeira pedrada ao vitral, como profetizado e colocado em
palavras pelo Vito, foi um “caminhão de bosta que bateu na hélice de um
avião Hércules”:
O prefeito Andrade no mesmo dia foi ao Palácio do Governador
na Capital e o cumprimentou com o “verdadeiro” aperto de mãos de Mestre
Maçom.
Aliás, alguns parasitas que orbitavam em volta do governador
ficaram perplexos e enciumados pelo modo “afetuoso” com que o prefeito
de João Neiva cumprimentava o governador. Para eles esta “agarração
de mão” era “um modismo matuto de um prefeitinho pé-de-chinelo e
bajulador”. Um dos assessores do governador chegou até a brincar:
– Está bem, Senhor Prefeito, agora o Senhor pode largar a mão do
Governador –, mas os dois o ignoraram.
O Governador e alguns sábios políticos, incluindo-se gente de
seu gabinete, deram atenção ao relatório verbal do prefeito sobre as tribulações
que a Loja Azul vinha enfrentando em João Neiva.
Bino não sabia a estória toda, mas certamente o prefeito devia
ter “soltado os cachorros nos padres,” que andavam “comendo o cérebro”
do povo da cidade: Alguns até já deviam acreditar que o templo dos
bíblias era mictório infantil, que os bodes adoravam o Diabo na figura do
Bode Negro, e que vitral de Loja Maçônica era alvo de pedradas.
O Vito, em sua linguagem arcana, bem tinha avisado ao Bino:
– Não entre nesta, Bino. É “boca de capeta”. Esta gente anda cutucando
onça de vara curta e ainda pior – "eles não sabem por onde o peixe
mija!” E por muitos anos Bino não entendeu esta alusão ao urinar de
peixes.
Mas, de qualquer forma, o governador convocou a cúria e teve
uma reunião com uns poucos “entendidos do assunto” e entre eles, estava
o Juiz Hudson de Aguiar, o Prefeito Andrade, o Pastor Wilson do Amaral
Tanini, vindo de Niterói e o bispo Fuchs da Capital.
O que foi dito e concordado entre eles ninguém sabe, mas os
sacerdotes italianos foram transferidos para outro Estado e os substitutos
deles deixaram os maçons em paz daquele dia em diante.
Eles também se retrataram da estória por eles criada de “bodes
pretos” e, a partir de então, passaram a referir-se aos frequentadores da
loja como “nossos amigos maçons”.

* * * * * *
Com respeito ao problema que os “Bíblias” estavam enfrentando
em sua igreja, para eles a solução veio de um modo mais simples.
Um dia um corpulento texano foi até a Vila numa caminhonete
Ford F-100 novinha em folha, calçando botas do faroeste, usando chapéu
enorme e, como se diz no Texas, de cinco galões, que segundo Vito
“cabia água dentro dele para dar de beber a meia dúzia de vacas.” Vito, não
se sabe como, descobriu depois que seu nome era Larrison H. Pike.
A visita do Gringo curiosamente se deu num dia de reunião na
Loja Maçônica. Desta história poucos conhecem seus detalhes, pois a
maior parte dela aconteceu dentro da tal Loja Azul. Muitos viram aquele
corpulento americano de rosto avermelhado, estava com um lenço na
mão e suava bastante.
O carteiro de João Neiva disse que ouviu da irmã de um Bode,
que o Gringo era familiar a todo o procedimento secreto deles. Ela notou
que depois de apertar mão do pessoal em frente da loja e falar um
pouquinho com o tal Mestre de lá, o Gringo voltou à caminhonete, pegou
um tipo de batina preta e uma vestimenta que parecia um babador
ou avental trabalhado em azul - e conversando e rindo familiarmente
entrou na loja com os bodes.
Na reunião foi-lhe dada uma oportunidade de dirigir-se a seus
irmãos e ele deu início à sua palavra com um sinal que era conhecido
somente por eles, o Grande Sinal de Socorro.
É pensamento geral que ele falou com seus irmãos sobre a perseguição
aos batistas, e eles certamente o ouviram com atenção. Ao deixarem
a loja, todos se abraçaram e quase nada de importante falavam.
Vito Cuzzuolli, sempre velhaco, escutando às escondidas, conseguiu
captar alguns pontos das conversas deles e começou a espalhar
rumores. Uma coisa que ele contou para todo o mundo foi que o pai do
texano era falecido, pois ouviu o americano dizer meio choroso que sua
mãe era viúva.
“Certamente”, dizia Vito “com dó do gringo órfão, os bodes lhe
disseram que fosse em paz e que eles se encarregariam de acabar com a
mijação de igreja.”

* * * * * *
A solução veio assim: em João Neiva havia um luterano gigante,
meio brasileiro, meio alemão, de nome Otto Kahle, que era quieto, de
pouca conversa, muito controlado, mas de gênio explosivo.
Este Otto foi sumariamente declarado o Delegado Interino da
vila. A pessoa que ele escolheu para ser seu braço direito, também era um
filho de Bode.
O delegado Kahle era um colono aparentemente calmo e de muito
boas maneiras, mas era sempre muito objetivo, ou no linguajar do povo,
“curto e grosso”.
Em seu primeiro dia como Delegado, ele foi visitar os párocos
locais e convocou uma reunião na Casa Paroquial. O que lá aconteceu,
todas as velhas senhoras da Vila, com ligeiras alterações, até hoje contam
com certo excitamento e com risinhos nervosos.
O delegado foi à Casa Paroquial e expôs casualmente aos padres
e seus párocos que na reunião estavam, como um fato consumado, que
“a partir daquela hora, ninguém vai causar qualquer dano na propriedade
da Igreja dos Bíblias” e, com polidez, sorrindo afavelmente, continuou a
discipliná-los:
– Senhores, eu detestaria ser forçado a castrar alguns dos meninos,
pois esses são bem jovens e deles se espera que cresçam se tornem
homens de respeito: – Que se casem e tenham uma família -, disse ele
acentuando algumas palavras.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

BINO TEDESCO o personagem principal de O PAPA BESOUROS

QUEM É BINO TEDESCO? ONDE COMEÇA SUA AVENTURA?
Fica no ar se o autor falava de um personagem real ou ficticio uma vez que ao longo de toda narrativa as situações, personagens e locais tem fundamentação real. Verifiquem:

* * * * * * * * * *    
Também Dom Genaro era Diretor Esportivo do time juvenil do Sul América, e
responsável por ter encontrado o Bino, um menino bem esperto, goleiro do
time de futebol da destilaria do Fantini, cuja atuação na trave do time oponente,
dava muito trabalho ao juvenil do Sul América; Dom Genaro convidou-o para
seu time e treinou-o como um dos melhores goleiros juvenis da região.
            Mais do que isto, havia uma cumplicidade maior entre os dois:
Bino pouco sabia sobre seu pai; aliás, Bino até o odiava. Este assunto
paterno era tabu para sua mãe Izabel, e o que ele conhecia bem era o
estigma da vila, que sempre mencionava ele como “Bino o filho do Padre”. 
            Mas Dom Genaro conheceu bem seu pai, Umberto Tedesco,
um padre Italiano que chegou a paróquia da Vila em experiência por
estar vacilando na fé. Em João Neiva, Padre Umberto se apaixonou
pela Izabel, retornou a Itália e morreu em Roma de tuberculose esperando
a aprovação do papel para se casar com ela e cuidar de seu filho.
            Esta verdade e o Sul América devolveram a auto-estima a
Bino, que agora era um atleta querido na cidade e visto como o
herdeiro natural de sua posição no time da primeira divisão. Desde
então, nas costas de seu uniforme negro seu nome era escrito
em amarelo: Tedesco.

        * * * * *
Dom Genaro era um homem de poucas palavras. Era alto, muito magro,
com um enorme bigode-de-guidão, e sempre usava um largo panamá
que sombreava seus penetrantes olhos azuis. Com o seu forte sotaque
italiano, ele educadamente saudou a todos com o chapéu, dizendo:
            – Senhores... –, e em seguida voltou-se para o prefeito e comentou:
– Então, senhor prefeito, hoje parece ser o grande dia de João Neiva!
– Parece que sim, Dom Genaro. Assim esperamos...
            Enquanto os adultos conversavam, os olhos acinzentados de
Pia discretamente encontraram-se com os de Bino. Depois de um
rápido devaneio, ele tirou seus olhos do olhar dela e olhou para a
estrada. Pia demonstrava um leve sorriso em seus lábios e Bino
estava enrubescido. Definitivamente eles se gostavam.
            Dom Genaro completou a sua breve conversa dizendo:
            – Tenho coisas importantes a entregar no hotel.
            E, despedindo-se com um aceno em seu chapéu, disse:
            – Uma boa tarde para vocês todos!
            Olhou então para Bino e acenou brevemente a cabeça.
Com um rápido toque de rédeas, sinalizou a Sansão para mover-se,
saiu em trote rápido para o hotel.
A multidão observava, e alguns saudosistas até ponderaram sobre a
cena do passado movendo-se bem defronte a seus olhos.

* * * * * * * * * * * *


Já há alguns anos a ferrovia principal desviava-se da Vila de João Neiva,
deixando assim de passar por ela todo o comboio que trazia minério de
ferro do interior de Minas para o porto de Vitória. Desde então a estação
de João Neiva tornara-se um ramal secundário daquela linha ferroviária,
e os passageiros do trem expresso, que para lá iam, tinham que fazer
baldeação na estação anterior de Caboclo Bernardo. E desta estação,
tomavam um trenzinho que fazia a conexão com João Neiva, percorrendo
uma distância aproximada de três quilômetros. Era um trecho de trilhos
desgastados, cheio de curvas, percorrido por um comboio de apenas
dois cambaleantes vagões de madeira, puxados por aquela velha
locomotiva a vapor, construída havia mais de cinqüenta anos na
Filadélfia, Estados Unidos.
            Tudo, porém, estava para mudar. O Departamento de Relações
Públicas da Estrada de Ferro havia informado ao povo da Vila com
bastante antecedência que, para cortar despesas, o velho trenzinho
de conexão seria substituído por um rápido ônibus, que proporcionaria
até mesmo mais conforto aos passageiros. E o tal ônibus já estava para
chegar: havia saído de São Paulo na noite anterior, e poderia chegar
a qualquer momento. O serviço de conexão feito com o ônibus deveria
iniciar-se no dia seguinte.
            O que os Joaoneivenses não sabiam, era que aquela esperada
chegada do “progresso”,  perversamente constituía apenas o início da
desativação de todas as atividades que a Vitória–Minas tinha em
João Neiva. Em sua Sede Administrativa, a desativação daquele
ramal era eufemisticamente referida como “Primeira Etapa”.
Depois de acabar com o dispendioso trem de conexão, a Segunda
Etapa viria dentro de seis meses: o encerramento das atividades
da Central de Manutenção de Locomotivas, que era a principal fonte
de empregos na Vila. Na Terceira Etapa, todas as atividades na
estação ferroviária da localidade seriam extintas: seu agente seria
aposentado, e também os funcionários do telégrafo, ajudantes, os
sinaleiros e o pessoal da manutenção da linha, após o que todas as
casas de propriedade da empresa seriam vendidas – casas essas
que no momento estavam alugadas aos empregados a preços simbólicos.
            A Quarta e última Etapa seria aquela que traria sobre a vila
um efeito ainda mais devastador. Seriam cortados todos os subsídios
que eram dados ao time de futebol que, naquela região, tinha a maior
torcida, e que mais título havia conquistado: o Sul América Futebol Clube:
paixão, orgulho e deleite de todo aquele povo de João Neiva.
                                                  * * * * * * * * * * * * * *

Conheça um pouco de João Neiva e sua ferrovia:


http://pt.wikipedia.org/wiki/Estrada_de_Ferro_Vit%C3%B3ria_a_Minas

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

DEPOIMENTO DO MAESTRO JOÃO CARLOS SOBRE 'O PAPA BESOUROS'

O MAESTRO JOAO CARLOS ESCREVEU ISSO SOBRE O PAPA-BESOUROS: "O livro de Sam de Mattos Jr, é uma daquelas grandes surpresas literarias, onde a leitura do primeiro capitulo envolve de tal forma que resta impossivel nao sorve-lo até a ultima linha, acompanhando as venturas e desventuras de Bino, do lar ao mundo, do mundo ao lar, com toda a bagagem que isso impoe". Joao Carlos Martins

http://nicholasgimenes.blogspot.com/2011/07/maestro-joao-carlos-martins-frases.html

EDIÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE 'O PAPA BESOUROS'

No dia 9 de Abril de 2011, às 21 horasfoi o lançamento do meu livro O PAPA BESOUROS pela Redes Editora, www.redeseditora.com.br/loja , Porto Alegre, 427 paginas) na PALAVRARIA, em Porto Alegre.
A Palavraria, cujo link é: http://palavraria.wordpress.com/ ,é um Lit-Point (Ponto Literário) notório por ser plataforma de lançamentos de muitos livros no Sul..

COMPRAS : LIVRARIA CULTURA  http://www.livrariacultura.com.br/scripts/busca/busca.asp?palavra=O+Papa+Besouros&tipo_pesq=&tipo_pesq_new_value=false&tkn=0
Para maiores contatos:Sam de Mattos Junior: papabesouro1@gmail.com
Roberta Martinewski-Livi (Agente Literária) -  roberta_livi@hotmail.com
Editora: redeseditora@redeseditora,com,br ( Att: Salete Moraes e Guacira Gil)
Agradecendo a comunidade literária capixaba e,
Semper fidelis,
Sam de Mattos, Jr.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

TRECHO DE 'O PAPA BESOUROS' - NAQUELA MANHÃ DE FÉRIAS

Por onde andará o meu amigo de infância, o Bino? A negócios e a passeio, andei por vários continentes, sempre o buscando nas paginas telefônicas dos hotéis. Conheci os Tedescos de Treviso, na Itália, retornei algumas vezes a João Neiva – e nada do Bino. Uns dizem que ele mora em São Paulo, tem fábricas e jatinho particular. Outros garantem que ele vive no Tibete como Monge Budista. Outros juram que ele tem um programa Evangélico em um Canal de Televisão de Los Angeles. Outros dizem que ele está preso. No outro dia juraram que uma pessoa parecida com ele, esteve em João Neiva há muito tempo e se foi com a Pia Thereza do Hotel Vitória, levando seu filho Pietro; mas esse hotel está interditado há anos. Os advogados nada falam.
Por onde andará o Bino?

* * * * * *
  
Antes de atravessar a Ponte de Ferro Preta, meu primo apontou o Bino, vulgo Vara Pau, descendo o Morro dos Canecos. Ele se rastejou por baixo de uma cerca de arame farpado cortando caminho pelo cemitério batista, pulou um valão, cortou pelos fundos da casa de seu Zé do Boi, desviou do vira-lata de Dona Aparecida e se encaminhou em nossa direção para irmos juntos a casa do seu Policarpo, técnico de futebol do Juvenil do Sul América.
– Lá vem o Bino, disse o primo
– Cadê ele?
– Tá vendo? Perto da casa da velha Teresa.
Então vi o Bino. Sua figura esguia investia morro abaixo como um cabrito em jejum.
Meu primo me olhou, e lendo na expressão marota de seus olhos, berrei:
– Bino-o! B I N O - O – O!
Chegando a Rua Beira Rio, agora a Silvino de Mattos, Bino troca de rota, se afastando de nós, ignorando o meu grito-apelo ele dobrou a esquerda, indo rio acima, em direção a Ponte de Pau. Mais do que frustrado, senti-me triste. Dentro de instantes ele iria desaparecer por trás da casa do velho Gianolli e temi que o desaparecimento de Bino resultasse na perda de minha manhã. Meu olhar descansou sobre os dormentes da Estrada de Ferro Vitória a Minas que pareciam dormir, e senti toda a plenitude opressiva de uma manhã quente e lerda. A brisa de água doce acariciava mornamente a vida, e trazia a poeira da estrada BR 101 em construção e envolvia a minha manhã num manto vermelho e triste.
Temi a perda da companhia do Bino. Coloquei ambas as mãos a boca e trombeteei:
– BINO-O! BINO VARA PAU!
Silêncio. Bino impassível continuou em sua marcha, ágil e rápida. Meu primo, inquieto, gaguejou ligeiro: --Vamos gritar juntos “Bino Vara Pau” quando eu contar até três:
– Um, dois, três: – BINO VARA PAU! Berramos com todo o fôlego.
Por um lapso de tempo houve uma pausa triste e longa. Para o lado norte da Baixa da Égua, somente os periquitos e cagasebos nos responderam em revoada estridente e sonora. Depois veio do Monte Negro um eco raquítico, pálido como um lamento de impaludismo:
– Vara Pau Au au au…
Fomos andando em direção a Ponte de Ferro Preta e vi, debaixo dos trilhos e dormentes, o Rio Piraqueaçu, rolando indolente e raso, ninando um porco que boiava mansamente, correnteza abaixo, como fosse uma miniatura de um porta-aviões de moscas varejeiras.
A sirene da oficina de reparo de locomotivas da Estrada de Ferro gemeu triste, chamando os operários. Chamava e chamava num mantra doentio e longo que parecia enlutar a vila. Veludo, o cachorro de pelos ásperos do velho Giácomo latiu aos céus, esfregou a cara na poeira vermelha, e uivou rumo ao sol, que estava sendo encoberto por uma nuvem branca, agourenta e seca.
Sentindo o dia nublar, também olhei em direção ao sol e vi a nuvem: ela me parecia a mão ressequida de um deus mesquinho de chuvas e embaçador de manhãs de férias. Um frio súbito encobriu-me o corpo, arrepiando os cabelos dos braços. Tive medo: a nuvem-mão parecia funesta. Olhei para o primo e sua face imberbe estava petrificada, magnetizada por outra visagem: A figura alegre de Bino, alerta, em passos firmes cruzando a Ponte de Pau, parecendo vir em nossa direção. Um esboço de riso risca o rosto de meu primo para se desabrochar em um sorriso. Um sorriso semelhante ao que ele esboçaria algum ano depois, morto na rodovia.
Imediatamente olhei em direção a Ponte de Pau e minha manhã se abriu em luzes e se explodiu em ramalhetes de alegria, esparramandose por eternidade efêmera: lá estava o Bino, viril, ereto, plantado na ponte, com ambas as mãos apontadas em nossa direção como mocinho de filme antigo de Faroeste Americano, empunhando os seus revólveresColt: tinha os seus dedos médios estendidos e os indicadores e anelares obscenamente encolhidos e balançava-os ameaçadoramente na nossa direção num duplo “aqui para vocês”, em mensagem clara, universal einequívoca.
Meu primo ria horrores. Eu via o mundo em dilúvio de lágrimas hilariantes, embebido em um dueto de gargalhadas livres e displicentes. Em seguida, uma voz forte e irritada, trovejou da ponte:
– A “Vara Pau” está aqui pendurada, gritou o Bino agora com sua mão direita balançando o saco.
O primo e eu rolávamos sobre as britas e trilhos da estrada de ferro, rindo de chorar, gargalhando e gargalhando, segurando as nossas barrigas que doíam e parecendo crescer, crescer como o Monte Negro
que nos observava silente, sem dizer que eu jamais veria o Bino de novo. Ah, mas eu ri tanto que me esqueci da nuvem ressequida passando, rolando para o leste, indo lá para os lados da Cachoeira do Inferno.
Na ocasião, confesso, nem notei que os trilhos bem como o rio, ea vida rolavam em direção ao mar.
Passada a nuvem, o sol voltou a requeimar a vila, roubando o orvalho das pastagens e secando as folhas úmidas das árvores novas. A correnteza lerda, finalmente limpou o Piraqueaçu, rolando o porco-ilha rio abaixo.
Novamente os seixos reluziam no leito do rio, refletindo o sol e cintilando cristalinos como se fossem estrelas de uma efêmera constelação áqueo-diurna.
Ainda rindo e descalços cruzamos a Ponte de Ferro Preta, acordando os dormitantes dormentes e flutuando para a casa de nosso treinador.
Bino já estava lá calado, vestindo a sua camisa de goleiro, negra, de manga comprida e acolchoada nos cotovelos.
Nunca confessei, mas eu tinha ciúmes da camisa dele, a única do time a ter o seu nome escrito em letras amarelas em suas costas: TEDESCO.
O velho Policarpo tinha todo o material de treino dentro de um saco de açúcar alvejado, e já estava pronto para sair e começar o treino no gramado.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

UM POUCO DE MINHAS LEMBRAÇAS - REPUBLICA PUREZA

CAUSO DA PUREZA
O BODẨO da nossa pureza era um Sansei sovina e CDF. Era da mesma cidade do Malinha Mancini, Mirandópolis, SP. Era meio matuto, óculos de aros grossos e de lentes de fundo de garrafas de Coca-Cola numa cara de Buda inchada de cortisona. Como se dizia lá em Ouro Preto, o Bodão era “ferrador” (sempre nos livros), disciplinado e não queria saber de festas, das turistas e nem tampouco das “santas” de Dona Santita.
A turma já andava de saco-cheio de sua atitude não “republicana” e ate egoísta. Foi ai que o Biafra, Malinha, Xibungo e outros concatenaram um plano de desforra. Alguém da republica achou na rua uma linda chanve de um carrão brasileiro da década dos setentas. Um Dodge Dart ou algo dessa linha. Imediatamente com uma precisão cirúrgica foi inserido no sabonete coletivo a tal chave, com cuidado tal que um dificilmente de notava que a barra de sabonete foi futricada e que estivesse recheada de chave.
Todos cuidavam do Bodão ao tomar o banho e enquanto nisso começou-se na republica uma seria discussão sobre o que um faria se ganhasse o Carro do Sabonete Lux. Uns falavam que se ganhasse o tal Carro do Sabonete, poriam toda a Republica dentro dele e iam zoar em BH; outros falavam em ir ate Guarapari ou Rio, e o bafo do carro fervia na PUREZA, mas o Bodão permanecia calado como um Buda. Um Buda meditando.
Um dia o Bodão saiu do banheiro após o seu banho. Saiu meio na moita, mas foi traído pelo seu semblante: ERA ELE O PREMIADO COM O CARRO!
A turma pressionou o Bodão a dizer o que faria com o carro e ele disse que o venderia. Pediram então a divisão do dinheiro, mas o bode foi irredutível: “NÃO. O CARRO E MEU”.
Foi argumentado que o SABONETE ERA COLETIVO, mas Bodão disse que ”a sorte foi minha”!
Aferrado ao ganho, Bodão amarrou a chave com um barbante forte no pescoço e dias depois partia para Mirandópolis para uma reunião com os advogados da família e legalizar a posse de seu carro.
Foi um vexame... Essa, eu creio, foi a “maior corda engolida” na PUREZA.
Tres dias depois, arrasado, humilhado e com a bunda quadrada de tanta cadeira de ônibus, Bodão voltou a Republica.
Ele deixou de falar com os PUROS, se formou na Escola de Minas, e nunca mais voltou ou mesmo contribuiu com a Republica para o “GOLO DO DOZE”. Neste ultimo baile do Doze de Outubro (aniversario da Venerável Escola), perguntei a turma sobre o bodão e me disseram que ele não quer saber nem da Republica nem de Ouro Preto. Em desdém falaram que ele deve andar por ai LAZARENTO, cortando palitos de fosforo ao meio para fumar guimbas de cigarro..
Se voce souber do BODAO DA PUREZA, me avise ou entre no site da REPUBLICA PUREZA, OURO PRETO, e avise a turma. Há novas sacanagens preparadas para o bodão.
Por Sam de Mattos, (O DA CANO)
Relatada pelo Paulo Roberto Secco, (O BIAFRA)

UM POUCO DE POESIA

AS AGUAS DO GUAIBA
As aguas do Rio Guaiba sao frias e turvas
E para onde vão tenho medo de saber.
Porto Alegre, meu lindo colono-sofisticado,
Maltratado, um Israel assimilado, neurotico,
Simplorio, comedor de bolinhos de chuva,
Hóstias, cucas, presunto e bolinhas de Matzo,
Vila de cocktails literários, roncadora de
Cuias de Mate e mitos, arraigada a tradições,
Perdida em bares, confrarias e gente gentil
Numa multidão de psicanalistas perdidos que,
Esculpem tuas aparencias, castas e custos,
Baixo um céu imprevisível de nuvens confusas e
Gordas; e mesmo em teu Verao tu podes ser fria, distante,
porem tu és
Sempre faceira.
Ah, Velho Guaíba, para onde rolas tu?
Ontem te vi banhado de lua cheia que parecia
Uma prenda prenha, uma estranha imagem,
Sugerindo uma Pomba - Maragata voando
Entre nuvens lerdas, banhando em prata, os
Moinhos de Vento, encantando minha amada,
Cuidando do silencio da cidade que dormia em
Lamentos transmutados de risos-promesas a
Desperados orgasmos, lavando seu rosto em
Triste lagrima de prata, perdoando tua vida,
Rolando para o mar.
Meu Tche Guaíba, tu és lindo, tu és lerdo,
Escuro, sombrio, mas tu és promessa;
Depois da Rua da Praia, te estudei e com
Passos incertos, empurrado por torcedores,
Uns azuis outros carmesins, mas todos loucos,
Eu rolei lombas abaixo entre uma multidão de
Gente rodando, subindo e descendo, lembrando
Cachorros em cio, e eu perdido, sonhando
Contigo e revivendo a Lua- Pomba - Argentum,
Te banhando em prata e sombreando, afagando
O nosso ninho nos Moinhos de Vento,
Numa noite fria.
E temendo ser assimilado e mesmerizado por ti,
Busco o teu refugio, entre sonhos e assombros,
Ponderando se devo navegar-te fugindo ao mar
Ou subir-te ate tuas verdadadeiras vertentes, para
Encontrar-te pequeno e simples, límpido, potavel
E lá morrer em ti.
De: Sam de Mattos, POA, Verao 2007

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

UM POUCO MAIS DE DEGUSTAÇÃO


... O consenso geral dos novos amigos do Chile era para Bino sair bem apressado de Santiago e, se possível, do Chile. A despedida foi até as 03h00min e depois de um café da manhã rápido, às 08h00min Bino já estava pedindo carona em direção à Carretera Pan Americana, indo em direção norte, para o Peru, e havia pouco movimento de carros, e os poucos veículos na estrada não paravam para ele. Bino andou mais de 20 quilômetros até às 14h30min, já estava na Estrada Pan Americana indo ao norte, dezenas de carros e caminhões passaram por ele e ninguém parava. Ele estava exausto, seus pés doídos e inchados, suas pernas exaustas, seus ombros feridos pela alça da mochila, mas ele seguia andando temendo que, se parasse, pudesse ser recolhido pela Policia Militar para investigação. O solzinho da tarde fria se escondia rápido e em breve viria a noite. mais carros passavam e continuavam a ignorar  Bino, um caminhão e duas caminhonetes até chegaram a diminuir a marcha como se estivessem relutando em parar, mas quando Bino corria até eles, como se mudassem de ideia, os motoristas aceleravam e seguiam viagem. Outros passavam por Bino, visivelmente chateados por não poderem ou não terem coragem de parar, mas seguiam viagem mesmo assim. A grande maioria dos carros ia à direção norte e aparentemente poucos queriam estar em Santiago. Alguma coisa deve estar bem errada na capital, pensou Bino. Talvez os motoristas estivessem com medo de pegar um terrorista ou fugitivo com uma mochila nas costas fugindo da capital. Então Bino se lembrou de uma bandeira brasileira que tinha ganhado dos Lewaschins em Passo Fundo. Ele abriu a mochila, tirou a bandeira que estava cuidadosamente dobrada, abriu-a, e com ela começou a fazer sinal para os carros agora identificando a sua nacionalidade. Já caia a tarde quando Bino viu um tipo de lotação, que os chilenos chamam de micro; era um Chevrolet 1956, mas sem identificação ou placas designando seu destino. Bino foi para o meio da estrada acenando a bandeira enquanto a lotação de destinação anônima subia laboriosamente a lomba e ele ficou em frente do carro até ver o motorista, um senhor com óculos de tartaruga, jogar o micro ônibus para a esquerda para sair fora dele e seguiu ladeira acima voltando para sua pista. Em seguida Bino viu as luzes do freio se acender e o micro ônibus parou. Depois a porta foi aberta e um jovem de boné branco abriu a porta e gritou;
 – Eh loco! Eres de Brasil?
 – Porra não está vendo a bandeira? gritou Bino em português substanciando sua nacionalidade, e em seguida correu para o lotação.
 * * * * * * O motorista do lotação não identificado era um senhor de quarenta e poucos anos, magro, claro, com um a cara de intelectual e vestia roupa cáqui. Ainda com cara de assustado e aborrecido pelo quase acidente causado por Bino perguntou?
– Para adonde vas?
 – Machu Pichu, no Peru, mas qualquer quilômetro para o norte é bom.
 – Nós não estamos indo muito longe...
 – Senhor qualquer ponto adiante está bom. Estou andando desde as oito da manhã e nunca vi na estrada um dia como hoje: Ninguém parou. 
Um senhor claro com cara de estrangeiro, falou em perfeito espanhol:
 – Luis, talvez nós necessitemos de um cozinheiro.
E o outro senhor, Luis, de trás do volante perguntou:
 – Você sabe e pode cozinhar?
Bino estranhou o “pode” especificamente sendo colocado na pergunta. Curioso, ele rapidamente vislumbrou o lotação com os olhos e viu que ele era um camper, com beliches, pequenos compartimentos, micro cozinha com fogareiro e geladeira, duas mesinhas, estantes cheias de vidros e latas de conservas e outros vitais, e do modo como estavam estocados pareceu a Bino que eles iam acampar em algum lugar - e por bastante tempo.
– Claro. Cozinho arroz, faço risoto, feijão, polenta e comida brasileira em geral.
O cavalheiro sentado num beliche atrás do camper, demonstrando conhecimento do Brasil, perguntou:
– E feijoada e caipirinha?
– Só me dar os pés e as orelhas de porco, cachaça e limão e o senhor terá os dois.
Todos riram.
– E se não tiver cachaça a faço com vodca, pisco, grapa e até com álcool de cana! Riram mais ainda.
– Eu não bebo. Isto é para o Sr. Gastón. Mas você me garante a feijoada?
– Agora, disse Bino.
– Bienvenido. E puxando uma alavanca manual no painel fechou a porta do carro e completou:
– Nada de feijão dentro deste carro; aqui o espaço é muito confinado... E continuou, num espanhol muito casto e desenvolto:
-Tu nombre es?
– Senhor meu nome é Bino Tedesco.
– Não necessita de chamar ninguém aqui de senhor. Meu nome é Luis Guzman, o cavalheiro conosco é o Gastón MacLean e estes são nossos assistentes o Lucho e o Pablo.
Bino sorriu para todos e disse:
– Mucho gusto, encantado.
 – Agora falando sério, Bino, nós estamos numa expedição científica. Eu sou Entomologista e o Gastón, Ornitologista. Estamos indo fazer um trabalho de campo no Deserto de Atacama ao norte do Chile e sul do Peru. Pelo menos lhe garanto uns 450 quilômetros a mais para o norte. Durante a viagem conversaremos mais e veremos o que eu posso fazer. Ponha a sua mochila no beliche de trás e se acomode em qualquer lugar.
* * * * * * Para Bino o micro ônibus do Dr. Luis era um paraíso. O Professor Luis Pena Guzman, Bino cedo descobriu, era um renomado entomologista, catedrático na Universidade do Chile, adido da Universidade de Harvard nos EUA, com mais de quatrocentos tipos de novas espécies e subespécies de insetos encontrados e catalogados por ele. Seu amigo de viagem é o Senhor Gastón MacLean, um intelectual, nacionalista chileno e ornitologista que havia dois anos publicou um livro intitulado A Bird Watcher Abroad Chile ou “ Um observador de Pássaros fora do Chile”. Dr. MacLean era um chileno, descendente de inglês-escocês, que imigraram para Punta Arenas, sul do Chile, nos anos trinta. Os rapazes assistentes do Dr. Luis eram aproximadamente da mesma idade do Bino, sendo que Lucho era o de boné branco, extrovertido, tocava violão e era brincalhão e o Pablo, mais tranquilo, dedicado aos livros e era mais quieto. Dr. Luiz tinha um fino humor e estava sempre sorrindo, exceto no trabalho. Já Dr. Gastón, era tranquilo, cordial, mas do tipo observador. Parecia que os chilenos estavam mais envolvidos com a Bossa Nova do que os próprios brasileiros. No ônibus eles perguntavam muito sobre a música brasileira e muito sobre a Bossa e seus compositores. Eles conheciam Tom Jobim, Menescal, Vinícius, João e Astrud Gilberto, Sérgio Mendes e por aí vai. O Lucho também gostava muito do Roberto e Erasmo Carlos. Em menos de uma hora de viagem Bino estava sendo assediado para cantar Garota de Ipanema, que eles diziam que deveria ser o Hino Nacional do Brasil. Lucho levava a música muito bem no violão, Pablo ia bem numa caixa de fósforos e Bino fez o possível num desempenho medíocre da música, mas foi muito aplaudido. Dr. Luis devia estar apressado. Só paravam o ônibus para abastecimento, sanduíches, café e refrigerante, que geralmente era Tang em pó, no mais era o ônibus seguindo em frente. Professor Luis passou o volante do camper para o Dr. Gastón e a viagem seguiu norte pela Carretera Pan Americana e havia trechos lindos do Oceano Pacifico à esquerda e as montanhas íngremes da cordilheira à direita e às vezes passando por lindos vales verdejantes brotando no meio de uma região desértica, regadas com águas cristalinas que desciam dos longínquos Andes que se via ao fundo. O espaço no ônibus era precário e a Bino lembrava o ambiente acanhado dos submarinos da Segunda Grande Guerra que ele tinha visto em filmes. Também a utilização de espaço era semelhante. E aquele laboratório móvel de estudos de insetos tinha um cheiro discreto de formaldeído - que não era o predileto do Bino. Mas mesmo assim, ele era agradecido pela carona e também pelos novos amigos. Bino perguntou a Lucho se eles tinham barracas no ônibus e eles tinham; ele se propôs dormir nela ou no chão do ônibus em seu saco de dormir, mas debaixo de um assento, poderia se puxar uma cama desmontável na qual Bino poderia se acomodar. O Lucho, meio malandro, tinha contrabandeado em seus pertences uma garrafa de pisco, e enquanto Doutor Guzman cochilava, ele tomou um bom gole e a passou para Pablo que a declinou, e Bino, mesmo temeroso, tomou também um golinho de boa solidariedade. Aí ele começou a tirar uns acordes diferentes em seu violão, e depois Bino descobriu que eram de uma música do interior do Chile chamada Cuenca ou Guarachas. De trás do volante, e atento na estrada, Dr. Gastón pediu a Lucho:
– Lucho, tu sabes tocar Si vás para Chile? A resposta de Lucho foi dedilhar os primeiros acordes da música, e de um frasco de formaldeído vazio, que ele tinha posto o pisco, sorveu um longo gole e voltou à música. Ai houve um silêncio no ônibus e só se ouvia o ligeiro ressonar do Dr. Guzman no beliche de trás. O momento era solene. Lucho afinava as cordas da guitarra com a precisão calma de um franco atirador até que o alvo da harmonia foi atingido em cheio. Seu rosto se encostava à guitarra como se ele lhe estudasse as entranhas, o coração do instrumento em busca do acorde perfeito.
http://www.youtube.com/watch?v=GYl-AivBCaE&feature=related  (escute a música)