O ônibus nem bem parou na estação rodoviária de San
Izidro, Bino começou a se lamentar do modo ríspido com que tratou os culeros de
Tijuana: San Yzidro parecia ser ainda o México.
Quase todos na rodoviária pareciam mexicanos e falavam
espanhol. Claro, Bino sabia que já estava na Califórnia, EUA, mas parecia ainda
a Baja Califórnia. Quase todos os letreiros que ele viu nos arredores e
também na Rodoviária estavam escritos em espanhol e as pessoas, em sua grande
maioria, naquela cidade eram latinas e falavam o espanhol.
Quanto ao inglês que Bino aprendeu em São Paulo com o
Pastor Tommy e seus amigos, era quase inútil e parecia piada sem graça. Parecia
que na fronteira o povo falava muito rápido e usavam palavras e contrações
verbais que ele nunca tinha escutado antes. Também as muitas palavras novas e
xingamentos. Enquanto Bino parava para meditar ou puxar do fundo do baú da sua
mente uma determinada palavra para entender uma sentença, o interlocutor já
estava a duas frases adiante e usando mais novas palavras que ele nunca tinha
escutado.
Parecia que eles falavam num patoá que não dava para ele
entender, mesmo tendo aprendido um caminhão de gramática. Seria isto o chamado texmexican? Um tipo de inglês de fronteira diferente? Mas
talvez em Los Angeles fosse diferente e ele entenderia mais, pois lá é bem EUA,
lá está Hollywood e todos aqueles artistas.
Frustrado ele pensou em sair do
ônibus e esticar as pernas um pouco mais, mas sentiu que estava sendo observado
por um homem moreno vestindo calca jeans com cinturão de fivela prateada, botas
texanas e chapéu de vaqueiro de feltro negro. Ele estava sentado num banco,
cigarro no canto da boca e olhava para outro lado, mas Bino sentiu que a sua
visão periférica estava cravada na porta do ônibus.
À medida que o ônibus se
aproximava da cidade, Bino já via alguns edifícios altos e se admirou como a
cidade era espraiada e as casas eram amplas e bem separadas umas das outras, em
muitas ele pode ver piscinas e não havia muros entre as gramas das casas.
Do ônibus Bino viu algumas marinas e ficou abismado com o
número de barcos que lá estavam ancorados.
San Diego pareceu a Bino uma cidade limpa, moderna, bonita e bem
cuidada: havia carros de todos os tipos por todos os lados, mas Bino estranhou
que não havia muitos edifícios altos e o número pequeno de pessoas andando em
suas calcadas no centro.
Ele viu algumas viaturas da Marinha de Guerra Americana e
muitos marinheiros e de imediato se deu conta que lá deveria ter uma grande
base da marinha e ele estava certo sobre esta suposição. Bem, pelo menos não
eram tanques verde oliva e nem milicos de Exército, pensou ele.
Bino desceu na rodoviária limpa e ampla esticou as
pernas, mas não saiu de perto do ônibus. Olhou cuidadosamente ao seu redor e
notou que havia mais americanos naquele local, mas assim mesmo continuava uma
forte influência de pessoas que pareciam ser de origem latina. Bino respirou fundo e ficou mais aliviado por
não ter encontrado nenhum tipo suspeito, nenhum destes latinos de mau caráter
como os culeros de Tijuana ou San Izidro.
Foi arisco ao banheiro, e o local era limpo, e estava com
bastante usuários. Bino lavou-se cuidadosamente com sabonete liquido, havia
água quente na pia e muitas toalhas de papel para se secar. Eles falavam em
Inglês, mas lá Bino também não entendia nada. Talvez fosse o sotaque de perto
da fronteira, ou o modismo do sul da Califórnia que fizesse o inglês ser tão
diferente do que ele falava com o Tommy.
A viagem para Los Angeles foi rápida. Durou cerca de
duas horas e meia. Bino dormiu um pouco e por breves períodos acordados se
abismava com as super estradas, os freeways. Seu ônibus ia por uma auto estrada de
múltiplas pistas com fortes divisórias de cimento armado, era bem sinalizada e
não tinha cruzamentos. Havia enxames de todos os tipos de veículos por todos os
lados e ele ficou de boca aberta em ver tantos conversíveis enormes, de capota
baixa, muitos deles dirigidos por mulheres e negros, fatos que ainda não
estavam programados a serem aceitos em seus circuitos de assimilação.
A estrada se intercalava com rampas, viadutos e trevos
suspensos a conectando com outras auto-estradas formando uma admirável malha
rodoviária.
Bino ficou boquiaberto, com a quantidade enorme de
construções, de casas, vilas e mais construções que ele via; parecia que os
americanos eram formigas que estavam sempre trabalhando em alguma coisa. San
Diego devia estar quase que conectada a Los Angeles por construções, casas,
vilas e fábricas
Maravilhado, Bino dormiu um pouco mais e quando menos
esperava já estava no centro de Los Angeles, local cheio de edifícios altos e
movimentado. Era uma cidade maior do que San Diego, mas era desleixada. Perto
da humilde rodoviária, ele viu muita gente suja e mal vestida, aparentemente
pedintes, viu novamente muitos latinos porém ficou mais impressionado com o
número de negros que tinha a cidade. Nunca em filmes americanos Bino tinha
visto tantos negros.
Finalmente
o ônibus chegou ao centro de Los Angeles, parou num tipo de sobrado velho onde
era a parada somente para os ônibus da Companhia Greyhound. Bino não gostou da
primeira impressão da cidade. Talvez melhor fosse começar tudo por San Diego ou
outra cidade, ele pensou.
Saltou,
pegou sua mochila e mostrou ao motorista um papel que estava escrito “SALVATION
ARMY” e este lhe apontou uma direção e falou algo que Bino não entendeu. O
motorista observou que Bino não entendia nada e explicou novamente desta vez
falando mais alto. Embaraçado Bino sorriu, fingiu que entendeu e partiu na
direção apontada. Ele repetiu esta operação algumas vezes e seguiu sempre na
direção apontada.
Bino
observou que a área se tornava cada vez mais densamente povoada de negros e
vendo isto temeu pela sua segurança. Os negros dos Estados Unidos só eram do
tipo raro, chamados no Brasil de “negões”. Gente grande, vestidos diferente, a
maioria era quase azul-marinho. Eram muito diferentes dos cafuzos, mulatos e
pardos que ele sempre conviveu harmoniosamente no Brasil e ele ficou meio sem
entender nada.
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O
local deu medo a Bino. Definitivamente estava povoado de todo tipo de raça e de
gente, mas uma coisa era comum: ali só existia gente da última estação do trem
da vida. Amputados da guerra do Vietnam, gente com a aparência de drogado,
bêbados, vagantes, desocupados e uns poucos que se via que estavam fazendo
força por um tipo de recuperação sócio-espiritual, tentando galgar a penúltima
ou antepenúltima estação da vida para seguir rumo melhores posições.
Na
portaria Bino foi atendido por um senhor de meia idade, vestindo roupas usadas
e de tamanho pelo menos uns dois números maior do que o seu tamanho. Olhando-o
mais de perto, Bino notou que o homem não deveria ter mais do que trinta anos,
mas o desgaste de sua vida lhe dava uma aparência de velho. O homem sorriu para
Bino, o chamou de “irmão” e placidamente lhe deu um sorriso de boca desfalcada
de dentes.
Em
seu inglês limitado, Bino mostrou o passaporte, disse que era do Brasil, e que
tinha uma carta de apresentação para O Exército da Salvação. Procurou no fundo
da mochila, abriu uma bolsa de plástico com seus documentos e tirou um envelope
amarrotado com uma carta datada de meses atrás, escrita em papel timbrado do
Exército da Salvação e assinada pelo Pastor Tommy e com o carimbo da
instituição em São Paulo.
Após ler cuidadosamente a
carta do pastor Tommy, o jovem-idoso da portaria o olhou bem da cabeça aos pés,
sorriu como alguém da família dele lá estivesse, estendeu o braço apertando
calorosamente a mão de Bino e disse num inglês compassado e claro:
– O meu nome também é Thomas. Robert Thomas. Chame-me de
Bob
Em seguida, Bob cadastrou Bino na recepção, anotando seu
número de passaporte e de data de chegada. Terminada a burocracia ele pegou a
mochila do Bino, ignorando as suas reclamações e a levou até o segundo andar.
Deu a chave de um minúsculo quarto com duas camas ao Bino, apontou um armário
de ferro lhe dizendo para guardar tudo sempre lá, lhe deu o cadeado e os seis
números de sua senha e disse:
– O banheiro é coletivo e está no final do corredor. As
suas toalhas estão sob o travesseiro. O culto da manhã é às 6 horas e o café da
manhã é depois do culto - para os que participaram do serviço. Seu período de
estadia aqui deverá ser de 72 horas. Em casos especiais poderemos estendê-la um
pouco mais. Aqui não se fuma, não se bebe, não pode haver uso de drogas e não pode
entrar mulher. Você me entende?
Bino entendeu e balançou afirmativamente a cabeça e disse
que entendeu tudo de modo claro. Bob sorriu e continuou devagar, claro e
pausadamente.
– Cuidado. Aqui há todo tipo de gente. Olhe sempre suas
coisas e mantenha todos os seus pertences o tempo todo chaveados. Cuidado com as ruas. Aqui em Los Angeles
corre muita droga e há muitos homeless, viciados em drogas e
alcoólatras. Cuidado com as ruas e a polícia...
Bino se apavorou. Ele sabia que dentro de três dias ele
teria que deixar o albergue e se defender por conta própria e o que ele viu e
ouviu lhe deram medo.
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