Bino subiria rumo leste, passando por Chaluanca e Abancay e chegaria ao cume do lindo Parque Nacional de Ampay, e depois a estrada iria rumo sudeste por uns cem quilômetros de subida até Cuzco, Capital Imperial dos Incas. Seria uma subida contínua de cinco mil metros de altura.
O plano era simples: um dia em Cuzco, pegar uma carona ou mesmo andar até Machu Pichu. Ele iria pela rota antiga dos incas, uma estrada secundária ligando Cuzco a Machu Pichu, onde Bino pretendia passar o resto do tempo. Voltaria pelo mesmo caminho e se encontraria com a expedição em San Nicolas, no litoral, no final de semana.
Sem problemas com o professor que achou fantástica a idéia de conhecer estas cidades milenares. Bino estava de mochila preparada e desta vez levava um cantil. Fez o café da manhã para a turma, comeu alguma coisa, brevemente se despediu e começou a pedir carona para Cuzco.
Não demorou muito parou uma Kombi alemã, modelo Westfalia, com placas estrangeiras negras e de números amarelos, nunca antes vista por ele.
– Do you speak English? Você fala inglês? Perguntou o rapaz sentado no banco de passageiro, com óculos de aros pequenos, lentes de fundo de garrafa, cabelos louros, longos e encaracolados, com uma cara de intelectual surfista.
– Enough to make you laugh, bastante para fazer você rir, disse Bino com forte sotaque brasileiro e sorrindo. Os dois americanos riram e perguntaram de onde ele era e para onde ia.
– Sou do Brasil. Pegando uma carona para Cuzco.
– E nós para Machu Pichu, você conhece a estrada?
– Sim, já a estudei no mapa. Disse Bino ao motorista, um jovem magro, simpático cabelo raleando com um rabo de cavalo, óculos escuros tipo John Lennon, com uma jaqueta do exército americano, parecendo um hippie estudioso.
– Basicamente é direto nesta estrada; sim, a estrada tem umas quebras, mas é só pedir informação.
– Você fala Espanhol?
– Relativamente bem. O bastante para me virar, respondeu Bino.
– Então vamos conosco, disse o motorista de rabo de cavalo, continuando: – Estudei espanhol quatro anos e ninguém me entende. E rindo disse: E também detesto ler mapas.
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A estrada estava pior do que eles esperavam. Demorou 09h30min para percorrem 500 quilômetros de Nazca a Cuzco.
Os rapazes eram irmãos e vinham da Califórnia. Eram os irmãos Mike e Mark Zimmerman, Mark o motorista de rabo de cavalo era professor de História das Civilizações e era o mais velho; Mike, o louro de cabelos encaracolados estava fazendo o seu Máster em História Pré-Colombiana, ambos na Universidade de Berkeley, na Califórnia.
Mark obteve uma licença Sabática sem remuneração por seis meses e o Mike englobou a viagem como parte de seus estudos privados.
Bino mencionou a expedição científica que ele participava e os irmãos ficaram extremamente interessados pelo trabalho do Dr. Luis Pena Guzman e mais ainda quando Bino mencionou que ele era adido a Universidade de Harvard. Bino comentou que o número de espécies e subespécies de insetos coletado e catalogada pelo professor chegava a centenas, a admiração foi imensa. Fizeram várias perguntas sobre a expedição, didaticamente conheciam o deserto de Atacama e ficaram impressionados que em lugar tão inóspito, tanta vida persistia nas areias secas.
Ambos os irmãos tinham um conhecimento profundo da civilização pré-colombiana andina e por excelência o Mark, PhD no assunto. Eles falavam de lugares históricos como se fossem suas vizinhanças. Falaram das linhas de Nazca, meras fileiras de pedras ao nível do mar, que iam por muitos quilômetros afora, formavam desenhos de pássaros, Insetos, animais, que eram vistos somente a centenas de metros de altura.
Mike afirmava que as pedras que as formavam, deviam ser parte de um antigo sistema de irrigação e que as figuras que elas representavam eram meramente ritualísticas ou religiosas. Já o Mark aceitava a explicação do irmão como viável, mas, disse que ele pensava que elas poderiam ser de origem extraterrestre conforme propôs Erich Von Daniken em seu livro Chariots of the Gods.
O Mike, empolgado, pediu a Bino para passar sua mochila para o banco da frente e depois mostrou várias fotos das linhas de Nazca vistas de um pequeno avião que eles alugaram para tirar fotos e Bino ficou admirado com a aranha, o pássaro e outras figuras que as pedras formavam do alto e disse:
– Estive acampado lá perto e não vi nada. Algumas vezes estamos tão perto da verdade que acabamos cegos pela proximidade.
Mike e Mark ficaram quietos pensando nas palavras de Bino e Mark falou:
– Bino, você está certo. Repare bem: nestas três horas e meia que estamos subindo a serra já passamos por dúzias de ruínas pré-colombianas. Há tantas delas ao nosso redor, e nós estamos tão próximos delas, que nem mais prestamos atenção nelas. Sim, as olhamos, mas não as vemos. Há tanta abundância de cultura Inca por aqui que ela ainda parece ser a norma e a construção ibérica a exceção, disse Mike baixo, como se falasse consigo próprio.
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No final da tarde chegaram a Cuzco, a quatro mil metros acima do nível do mar. Eles pararam numa área de descanso a beira da estrada onde havia outros carros parados e algumas barracas. Devia ser um tipo primitivo e improvisado de camping um pouco acima da cidade de Cuzco.
A altitude incomodava a todos. Mark tinha náusea, Mike não respirava direito e Bino tinha um pouco dos dois e se lembrando de Las Cuevas e do mate coca ele contou esta experiência aos amigos.
Mike o ouviu com toda a atenção, mas seus olhos estavam direcionados para um pobre nativo que laborava montanha a cima com uma carga de caixas nas suas costas, postas, de algum modo, em uma tira de couro que encontrava ponto de apoio passando-se ao redor de sua testa.
– Bino, disse o Mike com um sorriso maroto, – Ai subindo o morro vem o nosso mate.
– Que? Disse Bino confuso.
– Olhe bem a boca dele.
– Não vejo nada.
– Espere até o velho chegar mais perto.
E aí Bino notou que o pobre indiozinho parecia estar mascando fumo de rolo, como fazia o Vito em João Neiva. Só que o velho devia estar com meio quilo de fumo de corda na boca, quinhentos gramas em cada bochecha e disse.
– O pobre está de boca cheia de fumo de rolo.
– Não, Bino: o pobre está com a boa cheia de folhas de coca.
– O que?
– Sim senhor. – É a mesma cena pelos Andes afora e até mesmo em certos pontos da América Central. Folhas de coca, eu creio, foram o catalisador das obras da cultura Inca.
E Mike pediu ao Bino para negociar o alforje de folhas do velho. Ele baixou as caixas, cuspiu um bolo de folhas mascadas, sorriu com poucos dentes esverdeados, falando espanhol misturando com Quíchua, acabou vendendo ao Mike a metade das folhas a um preço bom, de fazê-lo sorrir.
Depois, o velhinho meteu a mão em seu alforje, encheu a boca com folhas frescas, não aceitou ajuda com as caixas, arrumou-as bem na tira de couro, passou-a pela testa, segurou-se nas caixas firmando-as em suas costas e subiu com a sua carga cantarolando alguma música nunca antes escutada por eles.
As folhas foram escondidas num dos muitos armariozinhos do camper; Bino esquentou a água numa plataforma dobrável ao lado da Kombi, num fogareiro a gás butano. Fez um belo mate-coca, beberam bastante e o mate foi o salvador da pátria.
Eles decidiram acampar por ali mesmo, mas desceram de carro até a cidade, compraram uns tamales, voltaram ao camping já de faróis acesos, e comeram tamales com mate-coca no camper.
À noite conversaram muito, enrolados em ponchos, e sentados em cadeiras de lona vendo as luzes da cidade abaixo. Mike realmente era uma enciclopédia em Historia pré-colombiana.
Quando Cuzco foi a capital do império Inca, tinha uma população de umas quinze mil pessoas e era uma cidade bem diferente. Em Cuzco havia muito ouro, o imperador num palácio belíssimo cercado de servos, concubinas, nobres e com inúmeras trilhas incas sempre cruzadas por velozes chasquis, ou maratonistas imperiais, carregando mensagens importantes de e por todas as partes do império.
– “Ao entrar na Capital do Império, o estrangeiro ouvia: Ama sua, ama quella, ama lulla - Não minta, não roube e não seja preguiçoso”
E Mike continuou: Há um mito persistente na América Latina de que os povos indígenas são preguiçosos. Ora esta gente foi trucidada pelos europeus, reduzidos a escrava e é claro que não produziam muito baixo a chibata. A industriosa cultura dos Incas está mais do que provada em suas construções e sistemas de estradas. Não eram preguiçosos, e sim operosos. Os europeus sim, que viviam no ócio e em busca de riquezas e escravos e os seus trabalhos eram o de pilhar a terra.
Eles foram dormir ao redor da meia noite. Os irmãos Zimmerman se enfiaram com seus sacos de dormir na cama dupla desmontável e Bino, acima deles, na cama de lona na barraca formada pelo teto de fibra levantado.
Cedo de manhã estavam de pé. Bino já tinha baixado o topo da Kombi, desarmado sua cama de lona e estava de poncho esquentando água para o café. De um dos armários o Mark tirou saquinhos de chocolate em pó e barras de cereais. Mike enchia um canecão bombeando água da pequena pia para escovarem os dentes e o banheiro seria mesmo numa casinha no final do camping onde já se formava uma fila.
Após o café, estavam animados e desceram de carro até Cuzco. Bino ficou encantado com a cidade, um formigueiro de descendentes de incas vendendo de tudo que se possa imaginar e entre si a maioria falava em Quíchua. Viram a Igreja Del Triunfo, sim do triunfo dos conquistadores sobre um povo que receberam os “conquistadores” de braços abertos. Bino tirou fotos da Plaza de Las Armas, lugar onde suntuosas cerimônias eram feitas pelos incas, pois aquele local era considerado o centro geométrico do império.
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Cedo nos preparamos para seguir rumando norte e esticar ate Trujillo, mas não chegamos nem a Chimbote. Uma hora antes de lá chegarmos a terra tremeu e deu para sentir as ondulações na estrada balançando o ônibus. Atemorizados encostamos o camper. Havia muitas ambulâncias e carros militares rumando em direção norte e sabíamos que o tremor de terra causou em algum lugar mais a norte um grande estrago. O trafego vindo do norte, praticamente parou. Horas depois, e cautelosa e apreensivamente fomos a Chimbote, que nos informaram foi a cidade que estava mais perto do epicentro do tremor de terra. Durante o trajeto paramos duas vezes por conta de tremores secundários.
Na chegada àquela cidade só vimos destruição: Sentimos várias vezes cidade tremer, grande parte dela foi destruída, especialmente as construções mais antigas, datando dos espanhóis - e muitas vidas ceifadas.
Praticamente todo o alimento e medicamento de primeiro socorro que havia no ônibus foram usados para alimentar alguns famintos e cuidar de uns poucos feridos; depois de quatro dias de atraso, circunspetos com a tragédia recomeçamos a jornada norte, temporariamente sem provisões, até sermos re-supridos em Trujillo.
Esta Vila seria o ponto da triste despedida de Bino e seus amigos chilenos. De Trujillo a expedição faria um turno leste em direção aos Andes, e retornaria sul por estradas secundárias bordejando algumas trilhas de incas em terras altas.
Também nas cercanias de Trujillo o Professor Luis, Lucho e Pablo continuariam as suas pesquisas para encontrar outros insetos desconhecidos pelo mundo, mas ao sair do deserto, subindo os Andes a expedição estaria numa área rica em pássaros e ali, o Dr. Gastón MacLean, começaria a sua pesquisa ornitológica.
E também eles pretendiam demorar bastante por lá, bastante até se sentirem confiantes que retornariam para um Chile mais estável.
Dizer adeus àqueles amigos não foi fácil: À noite, na despedida, nos derrubamos algumas garrafas de vinho. Lucho, Bino não sabe de onde, novamente materializou uma garrafa de pisco. Bino bebeu bastante e desta vez até o Pablo. Lucho dedilhava triste o seu violão, sempre em busca de um arranjo novo ou de um acorde perfeito, e Bino lhe disse:
– Tenho uma surpresa para você. E disse somente isso: Se Vás Para Chile.
Bino cantou toda a canção, sem errar uma estrofe, uma palavra.
Todos aplaudiram e o Professor Luis disse solene: Ahora tu eres un Chileno.
E Lucho tomou um gole muito grande, direto da garrafa sem pestanejar. Com a sua intensidade de músico, ele afundou o rosto em direção às cordas do violão, sussurrando alguma coisa para elas, e começou a dedilhar os primeiros acordes da Garota de Ipanema, e depois com uma voz bem baixinha a cantou em português do começo ao fim.
Às cinco da manhã quando Bino se levantou de ressaca para fazer o café, lá estava o Dr. Gastón de cozinheiro, já pondo ovos na frigideira.
– Hoje o cozinheiro sou eu. Com a sua saída é melhor eu me acostumar logo, disse ele brincando.
Deixaram Bino num posto de gasolina Texaco, e saíram de dentro do ônibus. Bino disse aos amigos:
– Eu não tenho, nem nunca terei palavras para agradecer o que vocês fizeram, e como fizeram, por mim, e pela amizade e fraternidade que encontrei com vocês. Eu sou muito pobre com as palavras, mas quero lhes dizer que sempre, em meu coração, eu terei um pouco do Chile, do Chile que aprendi de vocês.
Dizendo isto ele abraçou a cada um individualmente e o Lucho estava com lágrimas nos olhos. Abalado, Bino não ficou no posto a espera de uma carona - foi caminhando rumo norte pela Carretera Pan Americana. Dr. MacLean gritou para ele:
– Bino cuide bem dos documentos que estão dentro de seu passaporte.
Bino fez um sinal de positivo com o dedo polegar sem entender nada - e continuou andando, olhando para o acostamento da estrada e as lágrimas pingavam a beira do Deserto de Atacama,
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Bino saiu de Trujillo de coração partido. A expedição científica do Dr. Guzman e seus associados o tinha recebido de braços abertos e com eles Bino aprendeu a amar o Chile, os chilenos, e a solidão deslumbrante das noites no deserto de Atacama.
A solidão fria do deserto a noite é profunda e incoerentemente extasiante. A pessoa se sente em íntima companhia com o universo que parece se aproximar do silêncio e mostrar um pouquinho de sua grandeza ao que ali anda só. A companhia, a aproximação da lua, planetas, estrelas e galáxias realçam a pequenez do homem - mas em contra partida lhe dá uma sensação de êxtase, talvez por indicar que ele de algum modo é parte de um mecanismo infinitamente maior do que a si próprio.
De todas as boas memórias que Bino teve do Professor Guzman, a mais gratificante foi a de aprender apreciar e amar o deserto. Depois deste contato com o deserto Bino passou a entender os beduínos, e senso de aceitação do destino, da sina e o fatalismo do povo do deserto: Eles vêem algo que nós não vemos.