sexta-feira, 23 de setembro de 2011

ARGENTINA - A ditadura tambem estava por ali


            A ficha caiu na cabeça de Bino e ele se deu contas de sua mancada. A reclamação foi o seu segundo erro naquele ônibus. Reportando o furto do dinheiro, e o confronto com os federales era extremamente perigoso, pois os milicos argentinos andavam de braços dados com os brasileiros.
            Bino, tentado retificar o erro disse ao motorista:
            – Vamos ser justos. Eu disse isto porque penso que a minha mochila foi aberta e não encontrei o dinheiro onde eu pensava o ter guardado. Deixe-me verificar tudo e lhe direi se de fato sumiu ou não o dinheiro - e se sumiu quanto foi exatamente o furto.
            Entonces que vayas ligero, por que os federales estão bem perto.
            –Volto num minuto. Volto antes de San Tomas.
            Apurate, San Tomas esta aí adiante.
            Bino voltou ao seu assento, colocou o dinheiro da carteira dentro do passaporte, esperou um minuto e voltou rápido ao motorista ficando de pé do seu lado:
            Señor yo estaba cometendo una injusticia. E abrindo a passaporte disse:        
            –Todo o dinheiro estava aqui dentro e eu na pressa não tinha visto, mentiu ele mostrando o dinheiro.
            Tu estas seguro que toda la plata está aí? Disse o motorista, com o rosto sombrio.
            Si señor, con toda la seguridad. Parece que ele só andou revirando as minhas coisas, mas não pegou nada, floreou a mentira Bino.
            Deve ser un Boton hijo de puta, aludiu o motorista ao Ratão como “botão”.
            – Que disse?
            – Boton, Botones, Taqueria, tudo é nome de milico por aqui, explicou o motorista com um sorriso, e continuou:
            – Andam batendo nas calçadas com seus tacos, seus saltos e vestindo fardas cheias de botões! E continuou:
            – Aqui na Argentina estão nos vigiando até no banheiro. A cara deste tipo ratero não me é estranha.
            Deve ser um hijo de puta informante dos botones, seguramente. Estes vadios não têm o que fazer e agora até turistas eles incomodam. Por isto que o nosso país está em la mierda e o turismo a la puta madre que lo pario.
            Bino o ouviu calado. Ele também estava revoltado, mas não queria falar nada no ônibus onde até as pessoas sentadas nos bancos da frente podiam ouvir o que o motorista abertamente dizia.
            – Mire Muchacho. Até adiante de nós, disse ele apontando para a estrada que estava com o asfalto todo remendado. – Eles deviam estar reparando estradas com o nosso dinheiro de impostos. Não fazem nada. Não fazem estradas, não abrem escolas, hospitais, não fazem nada. Só farda, carros de assalto e pagando a rateros para ficar fuçando bolsa de turistas.

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O sorriso amarelo do motorista aos Federales de nada adiantou: Pararam o ônibus do Expresso San Luis na vila de San Tomas e Bino pressentindo alguma coisa foi para o banheiro do ônibus, vestido sentou-se no vaso, esperando o fim de sua jornada num inglório cubículo fedido a poucos quilômetros do seu portão de escape. 
            Seu corpo ficou retesado ficando esperando o momento fatídico das batidas na porta.
            O policial e entrou no ônibus que estava em silêncio. Bino colocou o ouvido na porta e ouviu parte da conversa.
            Procuravam por um fugitivo do Brasil que tinha um passaporte com o nome de Bino Tedesco e outras documentações com o nome de Antônio Fidelis que possivelmente ia para Buenos Aires.
            – O motorista disse não ter nenhum passageiro com este nome, mas mesmo assim o Policial pediu o manifesto dos passageiros, e de fato não havia nenhum Tedesco ou Fidelis.
            – E um tipo alto, olhos esverdeados e atléticos, disse o guarda. Parece que ele carrega uma mochila azul.
            – Si ahora yo me acuerdo: Eu me lembro. Este cara saiu do ônibus em Zarate e não voltou. Esperei até um pouco por ele, mas não voltava para o ônibus. Aí ele correu para o ônibus, pegou uma mochila e desceu me falando em Português que ia ficar ali. Um cara barbudo e de óculos escuros, o esperava num Peugeot azul claro e saiu quente em direção a Buenos Aires.
            – Un Peugeot azul claro?
            – Si. Era un coche bien nuevo.
            Vos vistes la licencia?
            Non, pero era licencia de Buenos Aires. Y nel volante iba uma muchara rubia, de unos vinte y seis años, fumava y usaba anteojos escuros.
            – Carlos, vos te acordas de uma Peugeot Azul Claro que passo com una rubia guapa a um rato atrás?  – Gritou o policial para fora do ônibus.
            Yo creo que era um verde claro, disse o outro policial.
            Mierda! Verde o azul claro?
            Se la yo! Estava mirando la rubia, hombre, disse o Carlos, completamente justificado pelo machismo.
            – Vos vistes dos tipos nel coche?
            – No estoy cierto, La rubia parecia sola.
            – Mierda inspecionaste el coche? El maletero?
            No carajo! No habia motivo de parar a nadie, era solo uma piba! Se la deje passar, por supuesto.      
            Carlos vos sois un idiota.  La vaga tenia dos subversivos nel maletero!
            E nervoso, o Federal começou a berrar ordens: Chame o posto Norte da Capital e digam para segurar todos os Peugeots: verdes ou azul claros, Todos. Passe um telex para a central de Buenos Aires e passe as informações do carro: Peugeot nova, dois caras e a loura, diga que tem placas da Capital.
            A voz agora era bem alta e para dentro do ônibus: – A Peugeot tinha duas ou quatro portas?
            – Quatro portas, disse o motorista.
            – Azul claro mesmo?
            – Bem estou de óculos escuros e o carro estava na sombra. Poderia ser um verde claro, quanto a isto não estou seguro.
            – Carlos adicione ao Telex que o carro é de quatro portas e é quase novo. Não mude a descrição da cor.
            E a voz autoritária berrou para dentro do ônibus: – Y ahora, andate vos que era um duro “Pode se arrancar agora”.
            Pela fresta de ventilação junto ao vidro fosco do banheiro, Bino viu um cara alto, de costeletas, óculos Ray Ban espelhado e de quepe e casaco de couro negro entrando num Ford Falcon da Policia Federal com outro policial já no assento. Em seguida, as luzes vermelhas da viatura começaram a piscar, ouviu-se o gemer da sirene e o Falcon de motor especial, saiu rasgando o acostamento e queimando pneus, deixando para trás só uma nuvem cinza de pó de pedra e cascalhos, alguns dos quais picotaram o ônibus.
            Com seus olhos grudados nas frestas da ventilação Bino viu o posto da policia federal ir passando e depois o ônibus pegou a estrada e ganhou velocidade, mas Bino ainda continuou, no banheiro e tremia de medo e agradecia a Deus por aquela gente humilde do ônibus que sabia que ele estava lá, mas nenhum deles o entregou.
            Se recompondo, Bino lavou o rosto, se enxugou e saiu do banheiro para a sua poltrona, e subitamente se espantou quando aquela gente o aplaudiu.
           
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O Sr. Martinez escorregou um pouco o vidro da janela e o sob o zumbido da turbulência do ar perguntou: – Como es tu nombre?
            Bino, Bino Tedesco.
            Yo pensava que tu nombre era Arturo.
            – Não Arthur é o nome falso em minha identidade estudantil.
          Novamente, por trás do bigode de guidão de motocicleta, Sr. Martinez esboçou um sorriso e dando novamente uma tampinha na perna de Bino lhe disse:
            – Bino, tudo vai sair bem.
            – Espero em Deus, disse Bino, e perguntou:
            – Sr, Martinez, a quantos quilômetros estamos de Munro?
            – Estamos indo em direção oposta. Munro está do outro lado; estamos indo para a Capital da Província de Buenos Aires, que é La Plata. E lá que eu vivo.
            – La Plata?
            – Sim. Nunca digo a ninguém onde realmente vivo. Eu tenho um ranchito em La Plata.
            – Mas o senhor não confiou nos passageiros do ônibus? Se fossem gente má eles nos denunciariam aos Federales.
            – Sim, eles não eram maus. Mas se tivesse um informante entre eles? E num sussurro disse: Bino, nunca fale muito em tempos difíceis como estes. Sob tortura todos falam; todos! Se alguém apertar qualquer um passageiro a resposta será verdadeira: Munro.
            – Mas o nome do senhor é Martinez; não é mesmo?
            – Que diferença faz disse o velho rindo? Mas o meu nome é mesmo Martinez. Juan Martinez. Quando o tema é meu nome, ai eu não sei mentir direito.
            – E nem eu, riu o Bino, e ambos riram.
            E o Sr. Martinez fechou o vidro de sua janela e dormiu.

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            La Plata definitivamente era bem menor do que Buenos Aires, mas mesmo assim era uma cidade bonita, bem iluminada, de ruas amplas, vários edifícios governamentais imponentes no estilo neoclássico.
            Uma cidade onde já a primeira vista se sentia a sobriedade e a aura cerimonial da capital da Província; Bino notou vários prédios imponentes de universidades e ele deduziu que lá seria também um centro intelectual argentino.
            O ônibus parou numa rodoviária simples, limpa, ampla e bem iluminada.
            Sr. Martinez fez sinal para Bino o acompanhar até uma cabine telefônica. Ele falou rápido com alguém e agora usava o seu castelhano interiorano, com uma cantadinha que Bino já tinha ouvido no norte da Argentina. Depois da chamada, ambos sentaram num banco de madeira, na extremidade da rodoviária, Bino pôs a mochila no chão e bocejou.

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Em quinze minutos Pablo já estava numa estrada rural de pó de pedra e pedregulhos indo em direção norte.
            A noite era iluminada, a lua dava uma nuance prateada na estrada e aos robles a beira da estrada, que pareciam cansados com seus ramos espreguiçados  e chorosos, o rádio tinha música campesina, com uma guitarra triste e Bino mal se mantinha acordado.
            Tudo era plano, os pampas pareciam uma lona prateada estendida com algumas casinhas e umas tantas araucárias, pinheiros e árvores sobre ela, e finalmente entraram em uma estradinha de barro que ia em direção ao ranchinho iluminado dos Martinezes que era praticamente cercado de muitas árvores, mas a noite Bino só identificou os plátanos e sauces chorões que protegiam o rancho do vento frio dos pampas, que eles chamavam de Minuano.

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Bino ficou duas semanas em Buenos Aires. 
            Carlos tentou arranjar documentação para Bino sair da Argentina por avião, mas devido a uma tentativa de bomba no aeroporto de Ezeiza, e a grande dificuldade de se obter o visto americano em Buenos Aires, a saída da Argentina por avião se tornou arriscada e imprudente. Houve grandes momentos de espera e até de frustração, mas Bino teve bastante tempo para conhecer a sua família mais a fundo, aprendeu muitos fatos curiosos sobre os Tedescos na Itália e até começou a sua árvore genealógica, indo completa três gerações ao passado.
            Bino sabendo que as tias estavam idosas passou com elas muitos dias adquirindo inúmeras informações sobre os seus antepassados, e anotando-as copiosamente em seu caderno e as tias estavam felizes de ter um sobrinho tão aplicado na genealogia familiar.
            Com Carlos e Alicia e, algumas vezes, com os Martinezes Bino conheceu vários locais turísticos de Buenos Aires e adjacências, Gostou dos bifes de quase um quilo e das famosas “papas fritas” do restaurante Los Anos Locos; visitou o Obelisco e lá tirou muitas fotos; subiram numa tarde o La Plata de barco-restaurante e Bino ficou espantado com a largura do rio e suas plácidas águas prateadas e com nuances douradas do pôr de sol. Também visitou a linda Catedral de Lujan, passeou e com Carlos e Pablo foram comer as famosas Empanadas Portenas na Recoleta e depois foram ver o super clássico do futebol Argentino, entre o River Plate e Boca Junior no estádio Vespúcio Liberti.  Neste dia o River perdeu em sua casa de um a zero e teve um quebra-quebra generalizado que muito assustou Bino.

http://blogs.estadao.com.br/ariel-palacios/ditadura-argentina-a-mais-sanguinaria-da/

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