Por onde andará o meu amigo de infância, o Bino? A negócios e a passeio, andei por vários continentes, sempre o buscando nas paginas telefônicas dos hotéis. Conheci os Tedescos de Treviso, na Itália, retornei algumas vezes a João Neiva – e nada do Bino. Uns dizem que ele mora em São Paulo, tem fábricas e jatinho particular. Outros garantem que ele vive no Tibete como Monge Budista. Outros juram que ele tem um programa Evangélico em um Canal de Televisão de Los Angeles. Outros dizem que ele está preso. No outro dia juraram que uma pessoa parecida com ele, esteve em João Neiva há muito tempo e se foi com a Pia Thereza do Hotel Vitória, levando seu filho Pietro; mas esse hotel está interditado há anos. Os advogados nada falam.
Por onde andará o Bino?
* * * * * *
Antes de atravessar a Ponte de Ferro Preta, meu primo apontou o Bino, vulgo Vara Pau, descendo o Morro dos Canecos. Ele se rastejou por baixo de uma cerca de arame farpado cortando caminho pelo cemitério batista, pulou um valão, cortou pelos fundos da casa de seu Zé do Boi, desviou do vira-lata de Dona Aparecida e se encaminhou em nossa direção para irmos juntos a casa do seu Policarpo, técnico de futebol do Juvenil do Sul América.
– Lá vem o Bino, disse o primo
– Cadê ele?
– Tá vendo? Perto da casa da velha Teresa.
Então vi o Bino. Sua figura esguia investia morro abaixo como um cabrito em jejum.
Meu primo me olhou, e lendo na expressão marota de seus olhos, berrei:
– Bino-o! B I N O - O – O!
Chegando a Rua Beira Rio, agora a Silvino de Mattos, Bino troca de rota, se afastando de nós, ignorando o meu grito-apelo ele dobrou a esquerda, indo rio acima, em direção a Ponte de Pau. Mais do que frustrado, senti-me triste. Dentro de instantes ele iria desaparecer por trás da casa do velho Gianolli e temi que o desaparecimento de Bino resultasse na perda de minha manhã. Meu olhar descansou sobre os dormentes da Estrada de Ferro Vitória a Minas que pareciam dormir, e senti toda a plenitude opressiva de uma manhã quente e lerda. A brisa de água doce acariciava mornamente a vida, e trazia a poeira da estrada BR 101 em construção e envolvia a minha manhã num manto vermelho e triste.
Temi a perda da companhia do Bino. Coloquei ambas as mãos a boca e trombeteei:
– BINO-O! BINO VARA PAU!
Silêncio. Bino impassível continuou em sua marcha, ágil e rápida. Meu primo, inquieto, gaguejou ligeiro: --Vamos gritar juntos “Bino Vara Pau” quando eu contar até três:
– Um, dois, três: – BINO VARA PAU! Berramos com todo o fôlego.
Por um lapso de tempo houve uma pausa triste e longa. Para o lado norte da Baixa da Égua, somente os periquitos e cagasebos nos responderam em revoada estridente e sonora. Depois veio do Monte Negro um eco raquítico, pálido como um lamento de impaludismo:
– Vara Pau Au au au…
Fomos andando em direção a Ponte de Ferro Preta e vi, debaixo dos trilhos e dormentes, o Rio Piraqueaçu, rolando indolente e raso, ninando um porco que boiava mansamente, correnteza abaixo, como fosse uma miniatura de um porta-aviões de moscas varejeiras.
A sirene da oficina de reparo de locomotivas da Estrada de Ferro gemeu triste, chamando os operários. Chamava e chamava num mantra doentio e longo que parecia enlutar a vila. Veludo, o cachorro de pelos ásperos do velho Giácomo latiu aos céus, esfregou a cara na poeira vermelha, e uivou rumo ao sol, que estava sendo encoberto por uma nuvem branca, agourenta e seca.
Sentindo o dia nublar, também olhei em direção ao sol e vi a nuvem: ela me parecia a mão ressequida de um deus mesquinho de chuvas e embaçador de manhãs de férias. Um frio súbito encobriu-me o corpo, arrepiando os cabelos dos braços. Tive medo: a nuvem-mão parecia funesta. Olhei para o primo e sua face imberbe estava petrificada, magnetizada por outra visagem: A figura alegre de Bino, alerta, em passos firmes cruzando a Ponte de Pau, parecendo vir em nossa direção. Um esboço de riso risca o rosto de meu primo para se desabrochar em um sorriso. Um sorriso semelhante ao que ele esboçaria algum ano depois, morto na rodovia.
Imediatamente olhei em direção a Ponte de Pau e minha manhã se abriu em luzes e se explodiu em ramalhetes de alegria, esparramandose por eternidade efêmera: lá estava o Bino, viril, ereto, plantado na ponte, com ambas as mãos apontadas em nossa direção como mocinho de filme antigo de Faroeste Americano, empunhando os seus revólveresColt: tinha os seus dedos médios estendidos e os indicadores e anelares obscenamente encolhidos e balançava-os ameaçadoramente na nossa direção num duplo “aqui para vocês”, em mensagem clara, universal einequívoca.
Meu primo ria horrores. Eu via o mundo em dilúvio de lágrimas hilariantes, embebido em um dueto de gargalhadas livres e displicentes. Em seguida, uma voz forte e irritada, trovejou da ponte:
– A “Vara Pau” está aqui pendurada, gritou o Bino agora com sua mão direita balançando o saco.
O primo e eu rolávamos sobre as britas e trilhos da estrada de ferro, rindo de chorar, gargalhando e gargalhando, segurando as nossas barrigas que doíam e parecendo crescer, crescer como o Monte Negro
que nos observava silente, sem dizer que eu jamais veria o Bino de novo. Ah, mas eu ri tanto que me esqueci da nuvem ressequida passando, rolando para o leste, indo lá para os lados da Cachoeira do Inferno.
Na ocasião, confesso, nem notei que os trilhos bem como o rio, ea vida rolavam em direção ao mar.
Passada a nuvem, o sol voltou a requeimar a vila, roubando o orvalho das pastagens e secando as folhas úmidas das árvores novas. A correnteza lerda, finalmente limpou o Piraqueaçu, rolando o porco-ilha rio abaixo.
Novamente os seixos reluziam no leito do rio, refletindo o sol e cintilando cristalinos como se fossem estrelas de uma efêmera constelação áqueo-diurna.
Ainda rindo e descalços cruzamos a Ponte de Ferro Preta, acordando os dormitantes dormentes e flutuando para a casa de nosso treinador.
Bino já estava lá calado, vestindo a sua camisa de goleiro, negra, de manga comprida e acolchoada nos cotovelos.
Nunca confessei, mas eu tinha ciúmes da camisa dele, a única do time a ter o seu nome escrito em letras amarelas em suas costas: TEDESCO.
O velho Policarpo tinha todo o material de treino dentro de um saco de açúcar alvejado, e já estava pronto para sair e começar o treino no gramado.
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