segunda-feira, 3 de outubro de 2011

CHILE - UM OUTRO 11 DE SETEMBRO





E no sonho, o Expresso San Juanino se tornou uma embarcação etérea, como um feliz Holandês Voador que navegasse em estradas de ferro, com sua tripulação fantasma passando célere por estações do mundo afora, numa viagem de harmonia dolorosa entre assombros, dúvidas, esperanças e sem um determinado ponto final de parada.
            E Bino se abraçava a sua mochila, com um sorriso em seu rosto, cruzando a província de Mendonza em direção aos Andes.
            Em dado momento ele vagarosamente abriu os seus olhos e aninhou-se no seu poncho gaúcho, sobre o seu blusão de náilon, e em espanto se deu contas de que estar desperto naquela hora não era muito diferente de seu sonho: O San Juanino, na curva sob o luar parecia uma curta meia lua de prata colada a terra. Bino elevou os seus olhos para o globo de luz cheio de besouros mortos e não gostou da visão. Se pos então a olhar os campos enluarados enquanto a locomotiva diesel subia laboriosamente  em marcha mais lenta, num matraquear de cremalheiras, quase que tentando despertar os seus passageiros que iam em direção aos Andes.
            O cansaço venceu e Bino cerrou seus olhos, e retornou aos seus estranhos sonhos.

                                                                       * * * * * *      

            A meia noite Bino chegou a Las Cuevas, fronteira da Argentina e Chile nos Andes. As montanhas ao redor e nas circunvizinhanças estavam cobertas por uma camada de gelo endurecido e perene. Bino sentia vontade de tocar o gelo, mas não o fez.
            Alguns atendentes passavam garrafas de oxigênio para os passageiros do trem, mas Bino não as usou. Sua cabeça parecia um pouco leve, mas ele não sentiu nenhuma sensação de náusea e nem de dor de cabeça.
            O trem demoraria mais tempo no topo da América do Sul, porque era fronteira e seria feito o cheque dos documentos e bagagens dos passageiros em ambos os lados da fronteira.
            Ao cruzar para o lado do Chile e ver um oficial verificando os passaportes Bino fingiu que estava  tonto e pediu a garrafa de oxigênio ao atendente e começou a respirar o oxigênio em grandes golfadas e a tossir seco e convulsivamente.
            O oficial chileno que checava os passaportes aproximou-se dele e o perguntou:
            – O senhor acha que precisa de um médico?
            – Não, só estou um pouco nauseado, mentiu Bino.
            – O oficial com o passaporte de Bino a mão, visivelmente preocupado, pediu ao atendente que preparasse um Mate-Coca, e carimbou o visto de entrada no passaporte de Bino, mal olhando para ele.
            – O que é mate coca? – perguntou Bino.
            – Ah é mate boliviano. É um mate estimulante que só servimos aqui ao cruzar esta fronteira. Ele ajuda a respirar e estimula a passagem do sangue no cérebro.
            E o oficial aduaneiro gentilmente retornou o passaporte a Bino.
            Veio o atendente Argentino e falou com ele que só ao cruzar a fronteira para o Chile ele poderia a servir o mate e o agente chileno disse:
            – Eu sei, eu sei, mas pegue logo a água quente, dois saquinhos de mate, pois já estamos para dar a partida. E com um olhar preocupado, finalizou:
            – Entrando no Chile traga o mate para este jovem. Ele parece que não está se adaptando bem a altura.
            Mal o trem começou a descer para o Chile, o Bino bebeu uma infusão de mate com folhas de coca e se sentiu bem confortável. Quase todos no seu vagão bebiam o mate, que era perfeitamente legal em muitos países andinos.
            Ainda que o este tipo de mate seja formalmente ilegal na Argentina, ele é também muito usado pela população andina da Argentina e lá a lei só era cumprida no trem - lei para turista ver.
            A infusão do mate-coca manteve os passageiros do Expresso San Juanino bem alertas, tagarelas e estimulados até o raiar do dia.
            Bino deu graças a Deus e o incidente da garrafa de oxigênio por entrar no Chile sem problemas.

* * * * * * * * * * * * * * * *

Bino se lembra bem de sua chegada a Santiago porque foi um dia depois dos jornais locais proclamarem a morte em Londres do grande guitarrista americano Jimi Hendrix.
            A capital chilena é uma cidade alta e ainda estava fria em meados de setembro quando Bino nela chegou e após descer na estação de trem ele logo se encaminhou para o Campus da Universidade Católica, recomendado a ele desde o Brasil por mochileiros que por lá pousaram. Lá havia um pouso para estudantes, um bandejão bom em conta e o campus era relativamente tranqüilo com poucas manifestações estudantis.
            A caminho do Campus, Bino notou com apreensão que em quase toda esquina tinha uma patrulha militar ou um carro de assalto de prontidão e em alguns edifícios governamentais havia até tanques; Bino sentiu que algo não andava bem naquele país e decidiu que Santiago era uma panela de pressão prestes a explodir e seria bom para ele dar o fora dali  rapidamente.
            Bino chegou cedo ao Campus, foi ao Centro Acadêmico, apresentou a documentação da UFPF com o nome de Artur Lange e conseguiu encontrar alojamento bem barato com direito o café da manhã no refeitório.
            Ele se acomodou num pequeno apartamento dividindo quarto com outro estudante do Peru que estava indo para o Uruguai. Ele fez o seu toalete, colocou uma camisa limpa, colocou a mochila num armário com cadeado e como ainda se servia café da manhã ele se dirigiu ao refeitório.
            Lá ele sentou-se com um grupo de estudantes argentinos e chilenos, pegou o seu café com pão Francês e compota, queijo e leite, e também um pãozinho circular como se fosse pão de Hamburgo, poroso, mas pesado, que os chilenos gostavam muito e o chamavam de muffin - ou panecito inglês.
            Bino ficou encasquetado com o tal pãozinho inglês, e veio a ser educado em história que houve muita influência inglesa e, até, norte americana no Chile, começando com mercenários destes países que desde os anos 1800 ajudaram a formar a Marinha de Guerra do Chile.  Quanto ao exército, os Prussianos ajudaram a estruturar  e organizar aquela instituição militar..
            Um detalhe que logo Bino notou nos universitários do Chile era a sua cultura geral, sua simplicidade e desejo em dividir conhecimentos com os amigos.
            Bino provou no refeitório, o “Ketchup chileno”, uma pasta deliciosa chamada ají, que era um molho apimentado muito saboroso. Bino passou ají no pãozinho inglês e riram-se muito quando ele sentiu o ardor do delicioso molho picante e chorou.
            Os chilenos, Bino logo observou, são tranqüilos e gostam de uma boa prosa: Eles conversaram sobre artes, historia e curiosidades gerais de seu país, e na ocasião se falou muito sobre a arte e vida de Jimi Hendrix. Mas, os estudantes eram reticentes quanto ao tema de política.
            Quando Bino perguntou a razão de tantos carros de assalto, tanques e soldados nas ruas houve um silêncio, e depois um dos jovens chamado Poblete, num tom sério e grave começou a explicar:
            – Duas semanas antes da chegada do Bino, o Salvador Allende, apoiado pelas esquerdas foi eleito numa acirrada votação contra um Randomiro Tomic, este apoiado pelas direitas e também pelos EUA.  Perdendo a eleição os direitistas tentaram com a CIA evitar a posse do Allende, houve tentativa de golpe com um tal  General Schneider  e o Presidente incumbente Frey, para manter o estado de ordem, colocou o exército nas ruas e a situação era explosiva.
           

* * * * * * * * * * * * * * * * * * *




Nenhum comentário:

Postar um comentário