quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Bino - o mochileiro

Bino, no começo, ressentia o termo mochileiro, quando aplicado a ele. Com o passar dos meses, ele notou que os mochileiros eram uma sub-cultura que de fato existia nas estradas e que de uma forma, rotulado nela, o ajudava a disfarçar a sua condição de fugitivo. Daí para diante ele abraçou o termo mochileiro sem ressentimentos.
Bino passou a estudar e definir os grupos de mochileiros que ele encontrava. Existiam vários tipos deles, com distintas características.
Por exemplo, seus equipamentos, suas mochilas e conteúdos eram específicos e mais do que isto, eles tinham um implícito “código de estrada” mais ou menos universal no que diz respeito ao seu bem estar e sobrevivência.
Se um mochileiro adoecesse na estrada todos ajudavam. Ou com remédio, ou procurando hospitais, apelando para conhecidos e no último caso até trazendo-o à sua família.
Eles sempre trocavam entre si informações sobre pousadas, albergues e escolas e também locais amigáveis e hostis a eles. Esse acervo de informações era repassado ao se cruzarem nas estradas lhes permitindo a ter um plano de ação formado muitos quilômetros antes de chegarem a seu destino.
Também se informavam e repassavam o conhecimento sobre fronteiras entre países ou províncias que os hostilizavam ou facilitavam; para os que usavam drogas, havia sempre informações onde ela poderia ser obtida, qual local era perigoso obtê-las ou a penalidade em usá-las em determinadas cidades ou locais.
Geralmente nos anos 1969 a 1970 a droga mais usada era a maconha e o pessoal que “fazia” drogas pesadas usavam o LSD. Os mochileiros usuários de drogas estavam em outra categoria, mais para o lado dos hippies do que dos mochileiros propriamente ditos, mas apesar da distinção, eles também se ajudavam mutuamente, apesar de andar pelas estradas em diferentes bandos.

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Entre os mochileiros era pecado mortal negar cigarros ou deixar de dividir a comida. A fama de um mau mochileiro, ou grupo destes, geralmente andava dias a frente deles – e a comunidade se afastava deles como se fossem infetados de peste bubônica.
Para um mochileiro sobreviver nas estradas já era bem difícil - e não havia necessidade de aumentar mais os riscos com má companhia e “mesquinharia” era considerada um crime muito mais além do que o uso de drogas.
Bino poucas vezes viu um bêbado no meio deles. Mas, geralmente, eles davam o chamado tapa-no-macaco ou tapinha - que era fumar um baseado.
Na América Latina não se levava drogas, pois as penalidades por conta delas eram bem altas. Quase todos os mochileiros sabiam de um ou mais conhecido que pegou de dois a dez anos de cana, em prisões desumanas por causa de drogas, então a maioria dos mochileiros andava de cara limpa.
Havia também todos os tipos e nuances de pessoas pululando as estradas com mochilas nas costas: Alguns estavam lá por turismo barato, outros em férias, outros procurando um sentido na vida, alguns fugindo de guerras, tentando entrar ilegalmente num país e só Deus sabe o motivo de cada um; mas este tema de “por que um foi para a estrada” era privado e era tabu bisbilhotar sobre o assunto.
Também Bino aprendeu a descobrir a história de viagens do mochileiro pela sua mochila, suvenires, roupas ou acessórios.

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Os americanos usavam mochilas grandes, de náilon reforçado, acolchoadas, confortável nas costas, e com armação de alumínio geralmente em cores bem chamativas e refletores de luz por medida de segurança na estrada. Elas tinham vários compartimentos e nelas era fácil de organizar as coisas. As mochilas dos americanos eram como a da amiga Gandira: cheias de souvenires e decalques dos locais por onde passaram eles.
Era um tipo de exposições das “medalhas de honra ao mérito”, de locais conhecidos, de “moral de estrada”. Os americanos também sempre tinham algo bom de comer em suas mochilas como carne e sopas desidratadas, chocolate, sabão, sabonete e xampu sem falar em pente, escova e pasta de dentes. Alguns até levavam uma mini barraca e um fogãozinho a gás, butano, canivete suíço e kit de primeiros socorros.
Carregavam também sempre um livro. Andavam de passaporte e bem documentados e traziam também com eles até cheques de viagem.        
Diferentes do resto dos mochileiros, os americanos e europeus eram respeitados como cidadãos em suas respectivas embaixadas, em caso de necessidade se faziam presente e lhes davam assistência. Este tratamento de suas embaixadas fazia com que eles fossem menos escorraçados pelas autoridades locais e algumas autoridades tinham até deferência por eles, os elevando a categoria de “turistas”.
Também eles sempre tinham informações de banhos públicos e onde se vendia isto ou aquilo. Os americanos tinham por uniforme, calças Lewis de jeans, óculos escuros, boné, camiseta e tênis confortáveis para a caminhada. Geralmente todos eram brancos e Bino nunca viu um negro, por estranha razão, entre eles.
Já os mochileiros europeus e canadenses eram simplesmente uma versão mais modesta dos americanos. Suas mochilas eram também de ótima qualidade, porém voltada mais para a durabilidade e essenciais - com cores menos berrantes, como verde, azul e marrom.
Eles também tinham sempre algo de comer em suas mochilas, mas era algo local, comida adquirida na estrada, Por exemplo, pão e queijo; tinham também café instantâneo, cigarros, lanternas e sempre com uma bandeirinha discreta de seus países colada a mochila. Era comum ver os europeus com uma dúzia ou duas de bananas penduradas em suas mochilas. Eram parcimoniosos com os decalques sobre a mochila e sempre tinham um vinho marca diabo com eles para desinfetar seus estômagos da comida local.
Diferente dos americanos eles quase sempre falavam vários idiomas, andavam com dicionários e sempre tentavam falar e aprender com os nativos. Os europeus não tinham tanta mania de banho quanto os latinos e americanos, tinha mais odor corporal e suas mulheres muitas vezes não barbeavam os sovacos. Usavam mais botas de trilha ou de escalada de montanhas, dificilmente se via um deles de tênis; eles também eram bem seguros com o dinheiro.
Já os argentinos, chilenos, uruguaios e latino-americanos em geral, eram mais pobres. Suas mochilas eram menores, de lona, mais modestas e algumas foram até acampadas das forças armadas de seus países. Eram bolsas quadrangulares ou triangulares com alguns bolsos e correias de couro e não tinham armação de metal, ou divisões.
O carregamento destas mochilas exigia certa logística nas camadas dos itens nela contidos. Os itens de maior e mais uso, iam sempre à parte superior, roupa lavada no meio e as sujas em baixo, quando possível enrolada em sacos de plásticos e quando não, iam perfumando as roupas limpas com cheiro de roupa usada.
As mochilas dos latinos geralmente eram pequenas, para os mochileiros de curta distância, como por exemplo, de Chile a Equador, e geralmente tinha a capacidade de 10 quilos de carga; as maiores, como a do Bino, era dos mochileiros de longa distância, era capaz de carregar até uns 25 quilos e eram maiores. A mochila “latina” também era reforçada com cantoneiras, fundos e tiras de couro e nada tinham de sintéticos. O couro de proteção evitava o esgarçar da lona depois de muito uso.
Também os latinos usavam tênis mais modestos, tipo o “Conga”, também usavam jeans ou camisetas, mas sempre usavam ponchos ou abrigos de lã. Muitos carregavam violões em suas jornadas e vez por outra um argentino trazia junto à mochila o seu bandoneón que é um tipo de concertina – o que Bino considerava um “trambolho” desnecessário.
Também sempre havia um vinho barato com eles e dormiam onde podiam: Em postos de gasolina, albergues, igrejas e escolas. Usavam de torneira, rios e riachos para banhar-se – mas tinham que ter os seus banhos diários.
Os latinos tinham muito pouco para dividir, mas dividiam o que tinham. Também não hesitavam em beber um pouco de leite de um latão esperando transporte na beira da estrada ou de passar por debaixo de uma cerca para pegar umas laranjas aqui e umas bananas ali.
Os mochileiros brasileiros viajavam só, eram namoradores, e escolhiam as suas namoradas fortuitamente em diversas localidades. Eram de boa paz com o mundo e tudo era beleza.
Os argentinos eram mais temperamentais, os chilenos mais sonhadores e poetas, e ambos levavam com mais freqüência as suas namoradas que eram afinal, que mandava neles.

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Os verdadeiros hippies eram um grupo heterogêneo, que geralmente vivia com o mínimo indispensável à manutenção da vida, sempre descobrindo onde encontrar drogas, quem as vendiam e não se preocupavam muito com o resto da vida.
Não tinham mochilas e andavam com bolsas, cestas e uns até com um saco de plástico com seus pertences. Seus trajes eram extravagantes e sujos, suas aparências não cuidadas e viviam em seu mundo, com a sua lógica e seus costumes tribais.
Eram fedorentos e suas meninas também, e desprezavam os mochileiros por serem adeptos da água e sabão, caretas em relação a eles e mais ou menos obedeciam à lei.
Geralmente os hippies tinham problema nas fronteiras de países por falta de documento,. ou por entrarem nos países sem vistos no passaporte, enfim Bino achou-os interessante e observou que individualmente, a maioria deles, era gente boa, mas como grupo, inconfiáveis e criadores - ou pára-raios - de problemas.
Para Bino que tinha um destino final quase que um Dharma a ser cumprido, ele evitava os hippies. Bino não queria problemas: ele tinha prometido sobreviver para dar testemunho do que viu, ele tinha que se cuidar muito e chegar ao seu destino.
Na estrada havia também hábitos idênticos a quase todos: não se carregava dinheiro a vista, armas ou nada de comprometedor nas mochilas – que constantemente eram revistadas, por qualquer motivo fortuito que julgassem as autoridades.
Já Bino era um completo “mochileiro” – ainda que meio “híbrido”: Primeiro, ele conhecia lugares e visitava pontos interessantes em sua jornada, mas ele nunca perdeu a perspectiva de que ele era também um “fugitivo”. A sua “logística” em cruzar fronteiras e lidar com autoridades não dava margens a erro.
Mas como um mochileiro qualquer, ele andava com uma mochila tipo americana, verde e bem usada que ganhara da Gandira, cheia de decalques de lugares que ele ainda não conhecia, usava calças jeans, uma camiseta de algodão, tênis nacional, e uma jaqueta americana acolchoada e de zíper, que ganhara do pastor Tommy; tinha seu passaporte verdadeiro, pensava ter uns cem dólares escondidos na jaqueta, junto com seus documentos – inclusive uma carteira de identidade falsa da UPF, com o nome de Arthur Lange.

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